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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

CRIANÇAS NA RODA NO CONCELHO DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 08.03.13

  

Srª de Lurdes

 

ACTAS DO IV CONGRESSO HISTÓRICO DE GUIMARÃES – DO ABSOLUTISMO AO LIBERALISMO

 

RITUAIS, ENCENAÇÕES E ESTRATÉGIAS FAMILIARES NO ALTO MINHO.

 

 

AS CRIANÇAS EXPOSTAS NA RODAS/HOSPÍCIOS AO LONGO DO SÉCULO XIX

 

Teodoro Afonso da Fonte (1)

 

 

    O estudo dos rituais, encenações e estratégias que aparecem associadas à exposição de crianças reveste-se de um interesse muito particular para a demografia histórica, história social e história das mentalidades. O seu conhecimento ajuda-nos a desvendar um comportamento demográfico que transitou do regime absolutista para o período liberal e atingiu a sua máxima expressão em meados do século XIX, coincidindo com o apogeu das rodas como mecanismos legais de recepção e acolhimento de crianças abandonadas.

 

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    Muitas das crianças expostas entravam directamente nas instituições de acolhimento, depois de expostas no mecanismo da roda e recolhidas pelas rodeiras, após terem sido avisadas da sua presença e de fazerem girar a plataforma onde haviam sido depositadas. Nalguns casos, poderiam ser os gritos das crianças expostas a alertarem a rodeira da sua presença, como aconteceu com um menino, António Oroeste, exposto na Roda de Melgaço, «sem reclamação ou chamamento da rodeira que atendeu aos choros da criança» , **. Seria uma forma de procurar preservar a identidade dos condutores, a partir dos quais se poderia chegar à família das crianças expostas.

    Estes procedimentos revelam que quem expunha as crianças se preocupava com a sua sorte, até pelo facto da generalidade delas serem deixadas em locais que permitissem a sua descoberta imediata, quando não eram entregues nas próprias instituições de acolhimento. Nestes casos, a exposição fazia-se em locais públicos ou privados, onde a presença de pessoas asseguraria a descoberta e acolhimento dessas crianças. Assim o fez o condutor de um menino que o “lançou” no interior da loja de José Maria Soares, da freguesia de S. Paio, concelho de Melgaço, pondo-se imediatamente em fuga, após o dono da casa se ter apercebido da presença da criança. Um outro condutor, que expôs uma criança à porta de Maria Luísa Pereira, da freguesia de Penso, do mesmo concelho, só abandonou o local depois de ter chamado pela “patroa” da casa, certificando-se da sua descoberta e acolhimento.

    Estes cuidados particulares não se justificariam quando os condutores fossem estranhos ao concelho onde se expunham as crianças. Neste caso, a sua entrega poderia ser realizada pessoalmente, como o fizeram dois homens que, ao passarem os Montes de Fiães, no concelho de Melgaço, encontraram Maria Joaquina Durães, residente no lugar de Sobreiro, freguesia de Cristóval, que lhe apresentaram uma menina e a obrigaram a recebê-la e a ficar com ela.

    A origem social dos expostos, as condições em que o parto se havia realizado e a existência ou não de cúmplices condicionavam as circunstâncias e as condições em que eram efectuadas as exposições, não sendo difícil o papel desempenhado pelas parteiras em todo este processo. Elas próprias se encarregariam de entregar ou mandar entregar algumas crianças nas instituições de assistência. Nalguns casos, elas próprias retiravam as crianças recém-nascidas às parturientes, sem a sua autorização, a pedido expresso dos pais ou de outros familiares, mais preocupados com a honra da família do que com a sorte das crianças ou o desespero das mães.

 

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    Só em casos absolutamente excepcionais é que a exposição se realizou em locais menos frequentados, pondo em risco a vida dos inocentes. Não registámos nenhuma exposição que tivesse sido efectuada em locais completamente isolados ou de fraca acessibilidade. A terem acontecido, estes não deixariam de configurar um cenário de infanticídio. Poderia ser esse caso de quem expôs uma menina na freguesia de Cristóval, concelho de Melgaço, no dia 26 de Agosto de 1862, tendo-a deixado debaixo de uma figueira, sobre um roço de silvas, a qual foi achada na madrugada desse dia, «quasi expirando por estar chovendo e sem agasalho» ***. Todavia, o facto de estar acompanhada por um pequeno enxoval, como vinha descrito no seu registo, afasta a hipótese de se tratar de uma forma de infanticídio deliberado, antes de uma negligência grosseira de quem se encarregou de a expor. Estes crimes seriam passíveis de punição, se fossem conhecidos e identificados os seus autores.

 

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     A não apresentação de mensagens escritas não significava, necessariamente, que essas crianças fossem expostas sem qualquer referência ou recomendação. Nada prova que as mesmas não tivessem sido substituídas por mensagens orais ****, transmitidas directamente às rodeiras ou às hospitaleiras.

 

    ** A.M.MG, Livro de Registo dos Expostos de Melgaço (1857-1896), fl. 55 v.º.

    ***A.M.MG, Livro de Registos dos Expostos de Melgaço (1857-1896), fl. 39 v.º.

     Esta menina estava «embrulhada em dois panos velhos de algodão que são inúteis e sem préstimo», assim como por um pequeno enxoval, constituído por uma camisa d’elefante e uma outra com as mangas sem pregar.

    ****O escrivão da Câmara de Melgaço registou a informação que os condutores de uma criança que acabavam de expor na Roda do concelho, em 31 de Outubro de 1858, se limitaram a transmitir a informação de que a criança ainda vinha sem baptismo e que se deveria chamar “Ludobina da Glória”.

 

 

(1)    Teodoro Afonso da Fonte – Doutorado em História (Demografia Histórica), Mestre em História das Populações e investigador do Núcleo de Estudos de População e Sociedade (NEPS) da Universidade do Minho.

Este trabalho aborda uma das temáticas desenvolvidas no âmbito da investigação que integrou a tese de doutoramento “No Limiar da Honra e da Pobreza. A Infância Desvalida e Abandonada no Alto Minho (1698-1924)”, defendida na Universidade do Minho, em 2004.