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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

CONTRABANDO EM MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 08.03.13

 

 

 O CONTRABANDO

 

    Melgaço ainda hoje é lembrado como um dos lugares míticos da época do contrabando e da emigração a salto. Toda esta região é por si só um museu do contrabando… um museu vivo… feito de histórias que hão-de passar de pais para filhos.

 

 

    Seja qual for o ângulo com que se tente abordar a vida nas regiões raianas, em qualquer parte do País, a narrativa foge, invariavelmente, para aquilo que foi durante gerações o principal sustento das populações no limiar da fronteira: o contrabandismo “…a prática do contrabando já faz parte da cultura dos concelhos raianos…”.

    Na época em que o comércio entre Portugal e Espanha estava restringido ao máximo, todos estes lugares fronteiriços foram importantes na protecção fiscal e económica do Estado. Melgaço não foi excepção.

    Aos guardas era exigido o cumprimento da lei, independentemente dos actos que tivessem de tomar. Qualquer objecto era considerado suspeito e todas as pessoas que passassem a fronteira eram alvo de fiscalização “…bastava trazer um saco para serem logo revistados…”

    A conjuntura política e as necessidades económicas destacam-se como as vias favoráveis que motivaram esta gente a importar e exportar mercadorias proibidas, através de uma fronteira que nos separava de Espanha, por rio ou montanha. Deste mercado negro que se desenvolveu, essencialmente, até ao terceiro quarto do século passado, nasceu outro fenómeno: o da intimidade com o outro lado da fronteira “…aqui todos entendemos e falamos espanhol e a fronteira é apenas uma linha num mapa…”

    Nesta viagem que fazemos ao tempo do contrabando em Melgaço, chegam-nos experiências de vida, contadas por quem viveu de perto este período conturbado da História. Experiências em primeira mão relatadas por alguns dos verdadeiros contrabandistas num regresso ao passado jamais esquecido.

    São algumas destas histórias que aqui vamos descrever, segundo o testemunho e consentimento dos próprios protagonistas.

 

    David Manuel Barbeitos, natural de São Gregório, Freguesia de Cristóval diz que o contrabando não era um crime “…o contrabandista nunca roubou nada a ninguém…sempre comprou a mercadoria que vendeu, fosse café, marisco ou tabaco…além disso, a gente só o fazia para conseguir viver…os tempos a isso obrigavam”. Começou a trabalhar no contrabando aos 13 anos de idade como empregado, principalmente na exportação de café para Espanha “…O café chegava em camiões, junto da fronteira com Espanha, normalmente em sacos de 60 Kg. A partir daqui era transportado às costas, por carro, em “batelas” (no rio Minho), ou até por mulas, atravessando assim a fronteira…

    Certa altura “…eu e mais seis jovens, transportávamos uma carga de café por entre as matas, já em território espanhol, quando fomos surpreendidos pela presença de três carabineiros...apavorado, fugi por entre as matas e campos agrícolas, e, não largando a carga, escondi-me num tanque onde se preparava o sulfato...fiquei dentro desse tanque desde as 16.00 horas às 21.30 horas…não que tinha sido perseguido ao som das balas!... “.

    David foi alvo da perseguição da policia espanhola, muitas vezes ao som dos disparos, e que apenas resultou na apreensão da mercadoria. Com 16 anos, chegou a trabalhar por conta própria, transportando, num carro de matrícula francesa, mercadoria diversa (utensílios agrícolas, peixe, marisco, tabaco…etc.), de Espanha para Portugal. Sem carta de condução, percorria o trajecto desde a fronteira até aos Arcos de Valdevez, o que, na altura, chegava a demorar aproximadamente 3 horas, pois era necessário evitar as estradas principais e, de quando em vez, como ele próprio nos diz: - “…parávamos, saíamos do carro, e falávamos com as pessoas, para fingir que não íamos a nada!

 

    Carlos Alberto Marques, 49 anos, natural de São Gregório, freguesia de Cristóval, mais conhecido por Kekas, começou a sua actividade de contrabando com apenas 3 anos de idade. Nessa altura, Kekas vivia em São Gregório e, enquanto sua mãe ia trabalhar, uma vizinha conhecida por “Teresa das Furnas”, de vez em quando prontificava-se a ficar com Kekas. Este, por sua vez, era utilizado para transportar, no interior das suas roupas, barras de ouro (também chamadas “chatarra” pois o nome “ouro” chamava muito a atenção) “…a dona Teresa fingindo ir a Espanha para comprar cacete galego, servia-se de mim para levar essas barras de ouro…certo dia, já com 5 anos, ao ser despido em Espanha para me retirarem a mercadoria caiu-me uma barra de ouro num pé, o que me magoou muito…quando a minha mãe me foi dar banho, observando tal ferimento, interrogou-me, e eu respondi, inocentemente, foi a chatarra que me caiu no pé!...Foi assim que a minha mãe ficou a saber que era utilizado para transporte de contrabando…

    Com 7 anos veio morar para a freguesia de Prado com seus pais. Aí, distante da fronteira, e já com 12 anos, dono de uma bicicleta, fingia ir jogar à bola e, pedalava, aproximadamente 11 kms, até São Gregório, onde procedia ao trespasse de cargas de café para Espanha “…este serviço rendia-me, na época, 7$50 por carga…

    Terminada esta fase, Kekas seguiu os seus estudos até ao 25 de Abril. Nesta altura, com 22 anos e, sem emprego, recomeça a actividade de transportador de contrabando.

    Após o 25 de Abril surgem em Portugal os novos ricos, começando, assim, a procura do marisco e, como este era raro e mais caro no nosso país, surge a oportunidade de se importar ilegalmente de Espanha. Certa noite, Kekas comprometeu-se a transportar uma carga de marisco que lhe seria entregue na fronteira às 4 da madrugada. Quando chegou, o guarda F da fronteira já tinha recebido o “passe” (comissão concedida para permitirem a passagem das mercadorias), entretanto entra um novo guarda K ao serviço, e apercebendo-se do esquema, pergunta ao guarda F se já tinha recebido a comissão, respondendo este que não. Assim resolve, juntamente com um outro guarda, perseguir o Kekas “…mas eu já fora alertado via rádio, pelo dono da carga (Sr. “D”), que estava a ser seguido…ao chegar à curva do ” bicho fino”, fui ultrapassado pelos guardas que me obstruíram a passagem…entretanto chega o Sr. D e inicia uma discussão com o guarda K, alegando que já tinha pago o respectivo “passe” ao guarda F…não chegando a acordo. O Sr. D, exaltado, dirigiu-se ao interior do seu carro, arrancou o espelho retrovisor e, bruscamente, encostou-o ao ouvido do guarda K, ameaçando-o que, se não lhe retirasse o carro da frente, lhe rebentava os miolos!...este com medo, pensando ser uma pistola, ordenou ao terceiro guarda que desimpedisse o caminho, prosseguindo assim, eu, o meu destino…porém e, após alguns minutos, os fiscais não desistem e continuam em minha perseguição…mais uma vez fui avisado pelo Sr. D…”.

    O peso da carga bem como as características da viatura não permitiram a Kekas distanciar-se o suficiente para evitar ser, novamente, apanhado “…desta vez, encostando a carrinha à berma esquerda, permiti a passagem dos agentes pela direita que, abrandando lentamente, foram surpreendidos pelo impacto intencional da viatura do Sr. D, o que lhe provocou a queda para uma poça aí existente!...

    Kekas, observador de tal espectáculo, prosseguiu a sua viagem sem ser mais incomodado “…os guardas? bem…esses…destruíram o veículo e, quanto a ferimentos, não passaram de uns arranhões…

 

 

(continua)