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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

TRABALHOS E PAIXÕS DE BENITO PRADA

melgaçodomonteàribeira, 08.03.13

 

 

TRABALHOS E PAIXÕS DE BENITO PRADA

 

 

   Filemón ouvia-a e percebeu o recado. Em vinte e quatro horas preparou a roda, largando para Melgaço.

   Foi um caminhar aflito e sem vontade. Chovia estupidamente. A moínha na perna direita não o largou a partir de Cortegada, desabrochando num inchaço que cresceu até se transformar num pão de quilo, como disse o endireita consultado em Padrenda que lhe sacou uma pequena fortuna para o esfregar durante meia hora com bálsamo da sardão.

   « Tens para muito tempo, afiador. Se fosse a ti não avançava mais. »

   « Ao certo o que será ? », doeu-se Filemón olhando o trambolho da perna.

   « Vá a gente saber. Mas o sardão é milagroso. »

   Filemón não sentia alívio nenhum. O endireita enxaguou as mãos numa bacia de folha e disse como se estivesse a discursar para os boiões dos unguentos:

   « É caruncho, afiador. Quando pega, nem os cirurgiões de Madrid têm remédio que lhe valha. »

   Arrastou-se em direcção à raia como se transportasse uma caterva de demónios presos à roda de afiar. Em São Gregório os guardinhas, condoídos, prescindiram de ver a cédula. Galegos eram às dúzias todas as Primaveras, os mais deles sem nada de seu que não fosse o sarro das estradas.

   Filemón adivinhou-lhes a alma e sorriu um sorriso fatigado ao lembrar-se das vezes que enchera o bolso de dinheiro. A verdade é que já tudo lhe pesava: ia para os quarenta anos, idade em que morrera o pai, afiador como ele, como ele tolhido de muito caminhar.

   Benito baixava do monte com a ovelha e as duas cabras quando avistou a cena entre todas inacreditável do landau da duquesa da Conquista parado à porta de casa e, tropeçando na perna doente, Filemón que tenteava a rua. Tinha acara branca como um pano de lençol. Nicolasa vira-o do muro do quintal e saiu aos gritos. Sempre gosta dele, pensou Benito largando os animais. Correu também. Filemón desfalecia.

   Triste e magoado foi o relato que o afiador lhes fez ao tempo em que Nicolasa desentrapava o joelho e massajava aquele inchaço de má cara, com mãos tão leves e amoráveis que por momentos imitaram a seda. Sofrera o achaque a um dia e meio de

Casdemundo; aguentara até Pontebarxas, onde a solução foi socorrer-se mais à frente com o endireita ; em Melgaço desistira, e um carro levou-o por caridade, e outro, até Viana do Castelo. Aí a soltura foi tanta que o seu amigo sr. José Martins teve que chamar dois homens com balde e esfregão para lavarem as escadas.

 

 

 Trabalhos e Paixões de Benito Prada

 

Fernando Assis Pacheco

 

Edições Asa

 

Círculo de Leitores

Pag.s 30 – 32

1994