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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

HISTÓRIA, CULTURA E PATRIMÓNIO IV

melgaçodomonteàribeira, 08.03.13

 

 

MENTIRAS DO BRASIL

 

 

Manuel Félix Igrejas

 

 

   — Ó tia Maria! Tia Maria dos Pinheiros! Ó tia Maria! Raios, parece que está mouca.

  Quem, esganiçado, gritava para aquela mulher sentada lá em cima daquele penedo era um rapazinho magrote, de aparência humilde, que servira de guia desde o lugar, lá em baixo, até à herdade da tia Maria dos Pinheiros.

   — Ó tia Maria, estão aqui uns senhores que vieram do Brasil e querem ver vomecê.

   Aquela mulher continuou imóvel parecendo não ter ouvido coisa alguma. Ela já vinha distinguindo os vultos daquelas pessoas estranhas, ainda elas vinham lá longe, não era ninguém que lhe interessasse; por isso aquele descaso.

   O rapazote, vendo que não adiantava insistir com a mulher, saiu correndo em direcção à casa mais adiante, deixando aquele casal ali parado, desajeitado, em frente à tia Maria.

   — Não estou aqui e não quero ver ninguém do Brasil, balbuciou finalmente aquela mulher.

   Toda vestida de preto, sentada naquele pedregulho com uma vara na mão, vigiava as galinhas e patos que ciscavam nas redondezas, não fossem entrar nos canteiros das alfaces e nabiças.

   Os forasteiros ficaram tristes com aquelas palavras frias, mas entendiam que deviam ser fruto de muitas amarguras.

   — Bom dia, senhora Maria, trazemos notícias de seus filhos do Rio de Janeiro.

   — Não, eu não tenho filhos… e, se tenho, são uns malandros, uns sem vergonha e não quero saber deles.

  E ao dizer isto, aquela mulher de pouco mais de sessenta anos, mas aparentando muito mais, pegou uma ponta do lenço que lhe cobria a cabeça e enxugou uma lágrima que não conseguiu segurar.

   Bastante robusta, a tia Maria aparentava mais idade no rosto, talvez por tanto chorar pelos dois rapazes que a tinham abandonado.

   — Ah, os senhores vieram do Brasil? Façam o favor de acompanhar-me, vamos até lá em casa.

   Quem assim falava era uma mulher ainda jovem que, avisada por aquele guia, viera ao encontro do casal visitante.

   — Não liguem para a minha mãe, ela está zangada, porque os meus irmãos, já vai anos que não escrevem. Mas os senhores trazem notícias deles, pois não trazem?

   E dizendo isto estacou, fixando ansiosa os rostos daqueles visitantes, como querendo adivinhar a resposta que lhes iriam dar.

   — Trazemos, sim, e também esta maleta com lembranças que o Joaquim mandou.

   Continuaram andando rumo à casa. Chegaram.

   — Entrem, entrem se fazem favor.

   Entraram numa sala bastante espaçosa, simples de mobiliário mas bem arrumada e asseio impecável. A casa era o tipo de moradia dos lavradores abastados do Alto-Minho. No meio de um quinteiro cercado de campos de milho quase na época da colheita, com latadas de uvas à volta de cada campo, árvores de fruto, horta e mais adiante o pinheiral. Não obstante a escassez de mão de obra, tudo se apresentava bem cuidado, fruto do trabalho daquelas duas mulheres.

   No outro lado da sala, aberta de par em par, uma janela deixava descortinar uma maravilhosa paisagem. Os visitantes, não resistindo, dirigiram-se para a janela, enquanto a Júlia, tendo pedido licença e rogado para ficarem à vontade, se preocupava em preparar a mesa.

   Da janela a cena era simplesmente esplendorosa. Campos de milho sobrepostos, descendo em socalcos, contornados de parreiras com as uvas começando a pintar, de quando em quando salpicados de pinheiros e árvores de fruto, num exuberante festival de verdes.

   E naqueles terrenos, colcha de retalhos verdejantes, sempre descendo qual imponente e gigantesco escadório, até chegarem lá em baixo, ao regato: um fio de límpido cristal coalhado de seixos arredondados que ao embate da água se cobriam de espuma transformando aquele plácido fio de água num maravilhoso colar de pérolas e diamantes.

   O murmúrio da água correndo placidamente, chegava aos ouvidos daqueles deslumbrados observadores de mistura com o chilrear dos pássaros, os zumbidos das abelhas e abelhões, o farfalhar das libélulas e o cricri dos grilos, tudo envolto no rumorejar da brisa num celestial concerto estival. E aquele sol de Agosto à viva força tudo querendo dourar.

   Do outro lado do regato a paisagem se repetia como reflexo de espelho, subindo e já em Espanha. A natureza não tem fronteiras. Para alguém desinformado jamais aquele pequeno riacho demonstraria que separava dois países: do lado de cá Portugal, do lado de lá a Espanha. Aves e insectos, no seu rodopiante bailado de louvor à vida, andavam de lá para cá e de cá para lá sem precisarem de passaporte ou qualquer documento inventado pelo complicado animal homem.

   Os olhos daqueles forasteiros, há muito tempo privados de tais cenários, estavam hipnotizados e recusavam-se a olhar outra coisa. Só quando o olfacto percebeu que estavam sendo postos na mesa o presunto, o salpicão, o pão e o vinho, é que foram obrigados a desviar-se.

   É costume daquela gente oferecer aos visitantes do melhor que tiverem em casa. Não importa a hora, tanto faz que seja de manhã cedo, à noite ou logo após as refeições, é a maior desfeita que se pode fazer a um português do Alto-Minho, entrar em sua casa sem comer dos seus melhores petiscos guardados ciosamente para essas alturas. E não basta petiscar; tem de comer bem, a fartar, para satisfação do dono da casa. A tia Maria, conhecida pela alcunha do lugar onde sempre morou, dos Pinheiros, acabava de chegar, lenta e triste. Não era alguém com notícias que ela esperava; era os filhos que há muito acalentava ver surgirem de repente, ainda que fosse isso a última coisa que olhasse na vida.

 

 (continua)