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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

SOFRIMENTOS INSENSATOS XXII

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

A Lídia não pôde suportar mais tempo o silêncio inquietante do rapaz. Endireitou-se e, inconscientemente, levantou os braços como quem quer contorcer a fatalidade com as mãos. Uma pequena aragem fez mexer os ramos do velho carvalho, a cabeça da moça encheu-se de sombra e o seu coração duma claridade infinita e abrasadora. Então, disse-o, tinha que dizê-lo, era, talvez, a última oportunidade que tinha de fazê-lo: “Gosto de ti, Mindo.” A suavidade do timbre e a melodia da voz fizeram-lhe lembrar a avó que, quando ele ainda era criancinha, lábios colados ao seu ouvido, o acalentava  cantando com meiguice. O moço levantou a cabeça bruscamente e um delicioso sorriso de instantânea  felicidade e alegria apareceu-lhe no rosto. Parecia uma flor que, depois do orvalho nocturno, desabrocha ao sentir as carícias do sol matinal. A rapariga, os penedos, as árvores, tudo se confundiu nos seus olhos e, nesse instante, viu a beleza da Lídia como nunca a vira, como gostaria de continuar a vê-la. Os seus lábios tremeram de desejo mas, com um lento esforço, como se lhe pesasse, desviou o olhar dela. A sua beleza, a sua graça, tinham-lhe dado tantas emoções que só ele e os seus desejos secretos conheciam. Para quê dizer-lhe que  gostava, que sempre gostara e que continuaria a gostar dela, como se fosse única na Terra ? Para quê dizer-lhe que nunca conhecera coisa tão boa como a sua presença, que nunca sentira uma euforia tão entorpecedora, tão apaziguante e agradável como com ela ? Para quê dizer-lhe que, com ela, esquecia os males, as contrariedades, as feridas que o ulceravam e que se sentia tão feliz como nunca imaginara que fosse possível ? Já não tinha sentido nenhum. Em escassos minutos, tudo se desmoronara, tudo se desagregara. O sonho deixara lugar à realidade.

Mantiveram-se silenciosos e imóveis largos instantes. A pobre ignorância que os definia ampliou-lhes o medo e a tristeza que tinham de separar-se. Sentiam-se tão pobres e órfãos como se fossem viver para mundos separados e longínquos. Fez uma festa na mão da rapariga e disse-lhe:

— Minh’irmam dicho-me qu’a gente ê mi mala, é tem razom. Nunca lhes cheg’ó que tem. Atê àlegria dos outros lhes pêsa.

A Lídia pôs uma mão sobre o seu ombro e olhou para ele. Não falou. O rapaz percebeu que não eram estas as palavras que ela esperava mas não conseguiu exprimir o que sentia. Os suspiros dos dois perdiam-se no silêncio. Ele, que se tinha prometido resistir, desafiar e mesmo enfrentar os que sempre o quiseram vilipendiar e aviltar, sentia as esperanças, as forças, a solidez que o amor pela rapariga lhe tinha incutido, sujeitar-se ao peso da vantagem, da utilidade, como o pinheiro que se verga sob a energia do vento ou da chuva.

A moça levantava e deixava cair as mãos nos joelhos fazendo pequenos movimentos de impotência. Por momentos, dava-lhe a impressão que tinha ido embora, que se encontrava alhures, longe, e que não podia encontrar o caminho de regresso para se encontrar com ela própria. Por sua vez, amaldiçoou a gente do lugar. As más-línguas têm todas um determinado talento para acentuar as acções e as palavras que o ódio lhes sugere.

— Êl tu, aconteça ô qu’acontecer, nom t’esquêces de mim ? – inquiriu o Armindo, sem olhar para ela, percebendo que o destino lhe roubava o seu amor para sempre.

Os olhos da moça embriagaram-se de um ardor, de uma radiância ofuscante. A floresta parecia que gemia com eles, duma maneira viva, cúmplice. Inclinou o corpo para trás, graciosamente, provocante. No seu movimento, nas suas palavras, notava-se a magnífica selvajaria do monte, do adejo que serve de apelo às parelhas de pássaros na floresta.

— Nunca, Mindo, nunca – repetiu-lhe – Todo los dias me lembrarei de ti é pedirei a Deus que t’abençoi é te deia um bô destino. É tamém ficamos amigos p’ra sempre, nom, Mindo ?

O rapaz pareceu apaziguado. Não contava com mais nada da vida. A moça, que esperava uma resposta, notou um princípio de cólera rebelde sufocá-la, como se tivesse sido insultada mas, ao voltar a ver o seu ar prostrado, entristecido, depressa se controlou. Apavorada, estendeu-lhe a mão, que transpirava, e que ele agarrou imediatamente.  Lembrou-se da noite que sonhara que a Lídia era sua irmã e vivia na sua casa... Talvez fosse o augúrio de que nunca seria sua mulher nem nunca lá entraria. Suspirou e apertou a mão da moça com tanta força que quase a fez soltar un gemido.

— Agôra que t’estab’à conhecer é que bira qu’êras a moça da minha bida, nom quero saber ô que seri’à minha bida sim ti.

Falou brevemente, tinha medo de dizer demais com poucas palavras. A moça não percebeu o fim da frase. Não tinha dúvidas de que a rapariga gostava muito dele, mas não lhe podia ser grato. Intimamente, fazia esforços vãos, mas o seu coração e a sua alma, gelados, só o deixavam pensar nele, na sua vida, no seu fim. Será verdade que a natureza humana repudia, como um sonho de criança, o amor sincero ? Será verdade que o amor se alimenta de angústias e de tormentos e que a seiva generosa e fecunda do seu caule seca com a tortura do destino, da inveja ?

— Boltarás a bir berme ? – perguntou subitamente o rapaz.

O pedido ficou sem resposta. Arrependeu-se imediatamente, sabia que tal coisa não tinha sentido.

A moça retirou a mão da dele e, decidida, saltou do muro.

— Tenho que m’ir embora, Mindo.

Na cabeça do rapaz, aquelas palavras entoaram como a saída da procissão. Nos seus olhos não havia lugar para mais sofrimento. O seu coração batia, dizendo-lhe que não  podia esquecer-se dos momentos da mais sã felicidade, da mais cristalina alegria que o tinham feito palpitar como nunca até ali. Bruscamente, sentiu-se miserável, humilhado, tal uma criatura selvagem dos montes, apanhada numa armadilha. Lentamente, deixou-se caír do muro e olhou para ela uns seguntos. Abatido, confuso, nunca pensara que houvesse coisas que o pudessem fazer sofrer ainda mais do que o que até ali tinha sofrido. Cegamente, inclinou-se, deitou as mãos à cintura da moça e apertou-a contra o seu peito desesperadamente. Queria fazê-la penetrar na sua carne, apoderar-se dela para sempre. A rapariga colou-se a ele e deitou-lhe os braços à volta do pescoço, como uma planta silvestre sedenta. Encravou a testa em fogo contra o peito do rapaz, apertou-o, abafou-o. No seu desejo obscuro, inflamado, procurava deixar de existir, fazer só um com ele, correr no seu corpo, no seu sangue, através das suas veias. Queria transfundir-se nele. A emoção tornava-lhe a respiração ofegante, difícil. Assim ficaram, imóveis, durante uns curtos instantes até que a rapariga, lentamente, o afastou dela e se deitou a correr pelo caminho fora, em direcção do lugar, sem olhar para trás.

O Armindo, braços pendentes, encurvado, de cabeça baixa, olhava para a curva do caminho onde vira, talvez pela última vez, desaparecer a Lídia. Estava desorientado, acabado, desamparado, renegado. Quando pensava ter encontrado uma razão, um estímulo para viver, para ser considerado normal, como os outros, quando pensava ter encontrado um paliativo para os tormentos crónicos que havia tanto o martirizavam, o cansavam, é quando o privam, o destituem da sua dignidade de ser humano ! Estava mais só do que nunca.

Foi então que a sua vontade, inconscientemente, agindo sem ele dar por ela, tomou uma resolução que o encheu de uma calma espantosa. As coisas correriam como deviam correr, pelo caminho que o destino escolhera, nem mais nem menos. E ele não podia, não tinha vontade, não tinha forças para se opor. Já não era dono de si. Deixava-se dirigir, como um rio que se vai adaptando ao declive, à escarpa. Subiu a encosta e foi sentar-se encostado ao eucalípto, de olhos fechados. Não sentia absolutamente nada. Estava completamente vazio, sem vontade, sem pena, sem inveja, sem tudo. Não tinha valor algum, não tinha qualquer utilidade, tinha menos valor do que uma cabra. Estava nu, como quando nascera.

 

(continua)