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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

SOFRIMENTOS INSENSATOS XXI

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

Às tardes, o Armindo sentava-se no muro e não cessava de olhar para a curva do caminho, esperando, a todo instante, ver despontar a Lídia com um saco às costas. Nessa tarde, o sol iluminava frouxamente o caminho por debaixo do carvalho e o rapaz, encostado ao eucalipto, acabava de fumar o segundo cigarro do dia.

O seu olhar, perdido para lá dos lindos e verdejantes vales que dali podia contemplar, viu súbitamente emergir qualquer coisa no caminho. Era a Lídia. Não trazia saco nenhum às costas. Tinha vindo de propósito para o ver, concluiu, satisfeito. Era a primeira vez. Levantou-se com prontidão e foi ter com ela ao caminho. Ficou desapontado ao distinguir no seu rosto crispado um olhar receoso. A rapariga desviou o olhar e fixou-o no chão. Evitava o do Armindo como se quisesse esconder qualquer coisa de vergonhoso nos seus próprios olhos. Nunca a tinha visto como naquele instante. A sua cara parecia estranhamente magra à sombra do carvalho.

— Êl tu que tês, Lídia ? Nom estás bem ? – inquiriu o rapaz preocupado.

Como resposta, foi sentar-se no muro, abanando a cabeça com tristeza e balançando as pernas, sem uma palavra. Pôs-se a brincar, ingenuamente, com as mãos no regaço. Alguma coisa a oprimia, lhe blocava as palavras no seu interior. O rapaz, cada vez mais inquieto, ficou de pé, imóvel, à espera. Não compreendia a razão do silêncio da moça. A sua hesitação, o seu combate interior, atormentavam-no, como todas as outras coisas que não percebia. Por fim, os seus olhares acabaram por encontrar-se e as nuvens húmidas que se tinham formado nos olhos da rapariga deixaram escapar fios de lágrimas. Chorou, chorou em silêncio. O coração do moço encheu-se da tristeza, do grande sofrimento que sentem as árvores, os animais, as pedras, tudo o que na terra não pode falar. Aproximou-se dela, agarrou-lhe na delicada cabeça com as duas mãos e apertou-a ansiosamente contra o seu robusto peito. Durante aqueles silenciosos segundos de terno enlace, perceberam que estavam tão bem juntos, que precisavam um do outro... Lentamente, separou-se dele e, quase que involuntariamente, começou a falar. Primeiro, balbuciando, depois, nervosamente, num tom acusador.

— Alguém dicho ô meu pai qu’andábamos juntos. Nom nos podêmos ber mais.

E calou-se. O rapaz, como se não tivesse ouvido, parecia olhar para as manchas de sombra que o sol fazia por debaixo da árvorea. Subitamente, disse:

— É quê ? Ê pecado ?

Falara instintivamente. Não falara com os lábios, mas com a alma. Não sabia que os corações, por muito indulgentes que fossem, nada podiam contra uma inveja acérrima. O seu olhar tornou-se, repentinamente, profundo e inapreensível. Dava a impressão que já sabia o que ia ouvir em seguida. Sentou-se ao lado dela.

A moça suspirou profundamente. Dardou uns instantes os olhos no rapaz, lutando desesperadamente para ficar muda. Na solidão da floresta, apenas se ouvia a sua respiração ofegante. Gostaria tanto de lhe dizer coisas que não o magoassem... Não podia perceber o que se tinha passado, a maldade das pessoas e, portanto, mal se admirava. Havia muito que estava habituada ao imprevisto. Tudo era tão incompreensível : as pessoas, a vida...

— Quêrem que me case com alguém que ganhe dinheiro é que nos tire da misêria p’ra qu’eu poida ocupar-me deles. Bem sabes qu’a minha mai está mi mal é ô meu pai p’ra lá bai.

As palavras pareciam vir de longe, como num sonho. Era pior do que a inveja. Era a submissão, o escalão mais baixo da dignidade humana. Inconscientemente, odiou o pai da rapariga. Odiou a gente toda do lugar. Odiou-se a ele. Sentiu uma moleza no corpo como nunca tinha conhecido até ali e, sem se aperceber, as lágrimas cairam-lhe pelos cantos do nariz. Já tinha sofrido muitas baixezas, muitas vexações, mas sentia que aquele momento era uma viragem determinante na sua consternadora vida. Sentia-se de novo sozinho no mundo e ainda mais desprezado. O seu coração batia tanto que parecia querer saltar-lhe para fora do peito. Cego pela dor que as crueis palavras lhe provocavam, apeteceu-lhe fugir através da floresta e gritar o seu desespero, a sua consternação, até vomitar as entranhas.

A rapariga inclinou a cabeça e lançou-lhe um rápido olhar. O sangue gelou-se-lhe nas veias. O Armindo estava pálido, os seus olhos, encharcados. Fechou os dela para afastar a assustadora visão. Sentia-se culpada por ele estar a sofrer tanto. Sem saber porquê, invadiu-a um medo feroz pelo que ele pudesse fazer. Dava-lhe a impressão que estava à beira de um abismo e que as profundezas da escuridão a puxavam para o fundo do precipício. As lágrimas escorreram-lhe novamente pelo rosto. Agarrou-lhe na mão com meiguice e apertou-a carinhosamente entre as suas, ao mesmo tempo que encostava a cara à dele. O rapaz atraiu pela segunda vez a cabeça da moça contra o seu peito para não a ver chorar e pôs-se a acariciá-la como a um pequeno cabrito doente que ele quisesse aliviar, adormecer. Não tinha dúvidas de que a Lídia gostava dele. Choraram em silêncio. Estavam sozinhos no mundo, contra toda a gente, pois todos eram seus inimigos.

— Eu nom posso fazer doutro modo, Mindo – começou, baixinho, encostada ao seu peito – Sabe-lo bem que tenho qu’obedecer ôs meus pais. Eles quêrem ô meu bem é nom sabem ô qu’ê gostar d’alguém. Só em saber que bou ter que me casar c’um home de quem nom gosto nem conheço, nom me sinto bem, bem-me cousas estranhas à cabeça é tenho medo.

Os seus pais eram pessoas que, desgraçadamente, nunca souberam o que era agradar, fazer alguém feliz... nunca o tinham sido. Eram coisas estranhas para eles. O sofrimento era tanto que só se viam a eles, neles próprios. E este sentimento levava-os insensivelmente a escolher as coisas que lhes eram cómodas, primordiais, em detrimento das que podiam ser agradáveis à filha. E, no monte, aos pais, nunca se desobedecia, nem nunca se discutiam os seus desejos.

Falara suavemente como se aquilo fosse a sua sina, o seu destino, uma fatalidade implacável que queria evitar ao moço. Gostava tanto dele que o seu mais pequeno sofrimento era para ela um suplício intolerável. Por isso lhe escondera o que o pai verdadeiramente lhe tinha dito: “Êl tu nom bás casar c’um aleijado, ou biu-t’uma bruxa ?” Aquelas palavras fizeram-na estremecer e penetraram no mais profundo do seu ser. Pareciam raios que precedem um retumbante estrondo e desaparecem depois  nas profundezas da terra nas noites de grande trovoada.

O rapaz continuava a mimar-lhe a testa e os lindos cabelos com doçura. Dava a impressão que estava longe dali, que o que a rapariga dizia não o concernia. E, portanto, pensava nela. Pensava na rapariga que admirava e que amava, que encontrava, havia uns dias, periodicamente, às tardes, com quem sonhava há muito e que jamais poderia extirpar da cabeça, do pensamento. Imperceptivelmente, combatia para que a demência animalesca que o roía, a raiva, a repugnância, a revolta surda que, durante uns curtos dias, tinham estado discretamente calmas, não triunfassem e o voltassem a dominar. Felizes aqueles que dão um valor imponente a uma vida simples, aparentemente fútil, e que, pela sua felicidade, pela sua salvação e pela sua prosperidade, a consideram como uma obra gigantesca. Que grande bem faça a quem assim pode agir, a quem assim pensa. O Armindo sentiu uma coisa gelada percorrer-lhe a espinha. Sabia que nunca teria uma vida assim, simples, alegre, no meio dos montes da terra que o viu nascer, com a mulher de que gostava, na companhia das cabras, suas notórias e sinceras companheiras.

 

(continua)