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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

SOFRIMENTOS INSENSATOS XIX

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

XXI

Para a Áurea, o domingo não foi longo em chegar. Passara os dois últimos dias a preparar-se mentalmente para este verdadeiro primeiro encontro. A sensação que o Pedro lhe produzira, quando bateu com ele na feira, fora extraordinariamente agradável. O importante era ver se o cenário, embora não voltasse a ser tão intenso, produzia as mesmas sensações.

Como tinham combinado, encontraram-se de tarde na pastelaria da alameda. Estavam a ser duas horas.  Nesse dia, os cafés e a alameda eram a propriedade dos amorosos. Os casais, sobretudo os casados, gostavam de mostrar-se publicamente arvorando, a maioria, sorrisos hipócritas sem sequência e dando espalhafatosas gargalhadas, mais para atrair os olhares alheios do que para manifestar a felicidade que sentiam por andarem  juntos ou que os unia.

Como da vez precedente, puderam sentar-se na mesma mesa. Pediram as mesmas coisas, um café e um carioca de limão. Ergueu-se um grande silêncio entre os dois. Os dois olhares entrechocaram-se e fixaram-se um no outro, uns instantes, como dois desconhecidos que se amavam. E, instintivamente, deitou a cabeça para trás, provocante. Não falavam, comiam-se com o olhar. Os seus lábios abriram-se como para beber. O Pedro não podia desprender os olhos dela. As pestanas pesaram-lhe e os olhos inebriaram-se-lhe. A Áurea viu a sua beleza nos olhos do rapaz. A partir daquele instante, o seu corpo não se esqueceu mais daqueles movimentos de sedução. Este novo e perigoso poder que ressentia na alma, que sempre tivera, mas que só hoje conhecera, fê-la arrepiar-se. Via-se neles que sentiam um prazer salutar e desmedido por estarem juntos.

A  Áurea, confusa, ao ver que o silêncio se prolongava demais, foi a primeira a falar, propondo-lhe a sessão cinematográfica da tarde. Não que lhe interessasse, nem sabia qual era o filme, mas unicamente para romper o silêncio embaraçoso que a perturbava. O Pedro assentiu, mas, manifestamente, sem grande entusiasmo. Certamente que preferia concentrar o intenso e penetrante olhar nos seus lindos olhos pretos em forma de amêndoa, dominados por umas sobrancelhas bem arqueadas.

Levantaram-se e, conversando placidamente, foram percorrendo no mesmo ritmo, num sentido e por um lado, e depois no outro e pelo outro lado, a comprida alameda sem reparar no que se passava à volta deles. Falavam de tudo, mostrando, tanto um como o outro, um bom conhecimento dos sucessos relevantes da vida portuguesa, assim como uma boa cultura geral. Às vezes, quando ela falava, atirado pelos movimentos dos seus lábios vermelhos, pelas suas faces tão frescas, e, como que perdido no meio das suas palavras e na emoção que estas lhe causavam, deixava de ouvi-la, sem saber como. Ele parecia sentir uma espécie de pudor em interrogar um ser cuja felicidade se lhe afigurava bastante frágil. Às vezes, olhava para o céu e pensava na forte alegria que provinha dos seus grandes olhos pretos. O prazer que sentia na companhia desta criatura, tanto o fazia saborear o presente como temer o futuro.

Nela, reinava uma estranha serenidade, parecida ao belo dia outonal que se fizera, e que ela desfrutava com delícia. Com ele, até as brincadeiras satíricas tinham o estígma do talento. Foram-se descobrindo, desvendando mutuamente, pouco a pouco. O tempo foi passando, imperturbável, sem se lembrar deles nem eles do tempo.

Não sabia quantas vezes tinha percorrido a alameda quando, passando diante do café-restaurante-cinema que tinha o mesmo nome, a Áurea reparou na multidão que, a sessão terminada, saía do cinema. Olhou para o relógio embora soubesse por experiência que passava das cinco. Efectivamente, eram cinco e um quarto, a hora do mil-folhas com o copinho de leite com canela. Deram uma última volta antes de se instalarem no café.

Uma hora mais tarde, deixou-se acompanhar à casa e despediram-se. No dia seguinte começava uma nova semana de trabalho. Era a sua prioridade. Tudo o mais só se poderia apegar nele.

Foi para o seu quarto preparar as coisas. Sentou-se uns momentos por cima da cama. Estava habituada a passear na alameda mas, como hoje, nunca lhe tinha sucedido. Tinha as pernas cansadas e doridas. Não afastava a possibilidade de ter cãibras de noite. Tinha o corpo e o espírito atormentados. Fechou os olhos e passou em revista a tarde que acabara de passar. Circunstâncias tão favoráveis como nas que ela se achava e a faziam sentir-se tão radiante, sabia que raramente se encontravam reunidas. Sobretudo, quando se sabe que o coração é o único a fazer o seu tormento ou a sua felicidade. Sentia-se bem na companhia do Pedro, sentia uma vontade, uma força interior, um encanto manifesto que a devorava aprazivelmente. Os seus olhos, tão bonitos e tão ternos, aterrorizavam-na de prazer. Qualquer coisa que descobria e cuja sensação enfrentava pela primeira vez. A segunda impressão que o Pedro lhe causara ia na mesmo sentido que a primeira. Ainda não podiam mentir-se um ao outro, que era o privilégio de um conhecimento mais estreito, de uma maior intimidade. Mas quaisquer que fossem as impressões de ambos, calavam-nas, escondiam-nas. Como se diz em determinados meios com uma elegância positiva e um pouco abstracta, encontrou-o bem. Riu-se. “Para já, estou na fase experimental. O tempo é o melhor censor, o melhor termómetro”, pensou.

Pensou nos pais. Só em pensar que extenuavam as suas forças a satisfazer necessidades, e que essas necessidades não serviam senão para prolongar a miserável existência que tinham, sentia o coração que se lhe fendia. A tranquilidade de que gozavam não era mais do que uma resignação fundada sobre infortúnios, semelhantes aos do prisioneiro que, para tornar a estadia mais agradável, pinta os muros da cela com cores variadas e perspectivas agradáveis.

Olhou pela janela e viu o pôr do sol que deitava sobre o rio os seus tons alaranjados, entrecortados de sombras. Ficou contente por poder gozar do charme da paisagem que dali desfrutava, de poder viver numa região que,  de certo, fora feita para almas como a dela.

A ceia era servida habitualmente às sete e meia. Desceu para a sala que havia ao lado da galeria, e que se encontrava deserta, e, depois de acender a televisão, instalou-se confortavelmente no sofá de três lugares. A alegria e a impaciência acabaram por aturdi-la.

 

(continua)