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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

SOFRIMENTOS INSENSATOS II

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

Portanto, a vida não a tinha galardoado. Aos doze anos, a tuberculose levou-lhe os pais e o irmão que era mais novo do que ela e que adorava. Recolhida por uma tia, começou por ir para o monte guardar cabras, seguindo-se depois, dia a dia, a rija escola do campo e do monte. Ainda não tinha dezoito anos quando conheceu o Abílio na festa de Cubalhão. Começou um namoro que não tardou em casamento. Pareciam feitos um para o outro e os anos deram-lhes razão. Apenas puderam dar vida a uma filha e com muita dificuldade. Fora um grande desgosto não poderem ter muitos filhos.

O pouco que tinham foi o Abílio que o ganhou no negócio das ovelhas e das cabras. Era mais do que suficiente para as exigências deles, pois tinham sido criados no nada. Viveram contentes e mesmo felizes, segundo o que eles entendiam por felicidade. Viviam um no outro. Chegaram a um ponto que quase nunca se falavam. Não precisavam de se interrogar para conhecerem os seus pensamentos. Compreendiam-se em tudo, estavam habituados aos mesmos gestos, às mesmas vontades, a viver as mesmas impressões, as mesmas dificuldades e como não conheciam o romantismo, não precisavam das palavras. Até que o Abílio, na sequência de um ataque cerebral, ficou gravemente enfermo. As sequelas eram irreversíveis. Foi o prelúdio de um cruel sofrimento. Tinha sessenta e cinco anos e a mulher menos cinco. Não podia falar nem mover-se. Durante cinco anos, não mais se levantou da cama, ocasionando um monte de desagradáveis encargos e dificuldades à pobre Delfina, que os enfrentou com tanta coragem e dedicação como de amor tinha por ele. Fazia tudo para estar junto dele a qualquer hora e dava-lhe todo o carinho que podia para aliviá-lo do inesperado pesadelo. Uma manhã, encontraram-no sem vida. A partir dali, todas as noites, a mulherzinha implorava Santa Rita para que lhe desse uma horinha breve e, sobretudo, que não acabasse acamada como o seu “Bilinho”. Antes de tudo, queria evitar de ser um fardo para a pequena família.

— Ai que bid’à minha, meu Deus ! – lastimou-se, estendendo a malga à filha.

“A minha pouco melhôr ê !”, murmurou-se esta, levantando-se e recolhendo a malga que foi pousar na cozinha. Regressou com meio copo de água e dois comprimidos que deu à mãe. Havia dez anos que o desditoso cenário se reproduzia diariamente.

— Bou acender a lareira, minha mai.

Foi para a cozinha. Numa panela fina de alumínio, pôs uma pouca de água a aquecer por cima do fogareiro para a mãe se poder lavar mais tarde. A Delfina, a idade ajudando, era muito friorenta. Com uma pinha seca e uma "carqueija" depressa pôs o lume a puxar.

II

O Armindo saíra da casa ao romper do dia com as cabras e com as vacas. Deixou estas a pascentar num grande campo, que se cobria de erva tenra de abril a outubro, situado junto do caminho do regato, e continuou até ao monte, mais adiante, onde as cabras podiam tosar no grande azinhal montanhês que tinham comprado ao tio Vitorino.

Era um belo rapaz, atlético, como o pode ser um aldeão cujo rosto está à mercê das vicissitudes do ar agreste do monte e dos rijos trabalhos do campo. Pacato, introvertido, tinha ares de viver contente no meio da natureza e dos animais. Portanto, tinha passado e passava uma vida difícil, dolorosa, constantamente magoado pela rudeza da gente e pela crassidade dos hábitos. Ia no quinto ano de vida quando teve o ataque de um “mal estranho” que o deixou com um defeito nos dois membros destros : o braço ficou-lhe como quando tinha cinco anos, diminuto, atrofiado, e o pé, igualmente deformado, obrigava-o a coxear. Desde então, experimentou constantemente motejos e trejeitos dos rapazes da sua idade que, ajudados pela ignorância, consideravam mais o seu infortúnio como um sortilégio. A verdadeira mágoa começou a senti-la muito antes do início da adolescência. Morosamente, foi incrementando, roendo-o e confiscando-lhe todo sonho que pudesse ter. Sentia-se preso num beco sombrio, doloroso e sem fim. Dentro e fora dele tudo tinha o sinal da cólera. Sabe Deus quantas vezes se foi deitar com o desejo, com a esperança de não mais acordar e, de manhã, ao abrir os olhos e ao ver o sol, sentia uma tristeza e uma frustração inconsoláveis. O desânimo e a mágoa tinham ganho raízes cada vez mais profundas na sua alma e, pouco a pouco, tinham-se tornado donos de todo o seu ser. Os amigos eram inexistentes e tampouco os procurava. Tinha, simplesmente, alguns raros rapazes com os quais trocava umas palavras quando calhava, sobretudo para tentar minorar as diferenças físicas que os outros não deixavam de lhe relevar incessantemente.

Já não tinham conta as noites que sonhava que era como os outros, que corria, que saltava e até que namorava. Sonhara que tinha uma vida extraordinária, sonhara com tudo o que, certamente, nunca poderia ser, ter ou fazer. A desilusão fora igualmente imensa para toda a família que não pôde senão remeter-se ao destino e a Deus. “Ê como Deus o fijo", consolava-o a avó, meia atordoada pela enfermidade do neto.

Passava os dias a falar e a brincar com as cabras como amigas que as considerava. Às oito que possuiam, tinha-lhes posto um nome. Era da Rabugenta, um cabrito acastanhado, que mais gostava por ser recalcitrante e o contrariar continuamente. As horas que tinha que guardá-las, passava-as sentado a observar os lindos vales bem moldados que dali se podiam divisar ao longe. Desenrascava-se como podia para não se aborrecer. No verão, o voo das moscas, o zumbido das vespas, as borboletas e os insectos atraídos pelo cheiro das flores eram suficientes para lhe distrair o espírito. Outras vezes, deitava-se de costas no chão a observar o céu azul. A sensação de grandeza, de liberdade e de avulsão física que sentia era assombrosa e punha-o num estado de semi levitação. Quando via uma ave de rapina em busca de presa descrever grandes círculos no céu, fechava os olhos e sonhava que voava ao seu lado, livre dos seus movimentos. O sonho era a sua verdadeira realidade.

“O dia nom está mui católico”, pensou o rapaz, olhando para o céu. Este, tanto se encobria de nuvens escuras, ameaçadoras de chuva, como deixava transpassar os raios do sol já combalidos.

Deitou uma olhadela às cabras, disseminadas pelo azinhal e, uma vez assegurado, sentou-se encostando-se a um majestoso eucalipto. Para aquela região montanhosa, era uma árvore inabitual. Apreciava o cheiro que dele emanava porque, além de ser agradável, também era "mi bô" para limpar os pulmões, dizia a sua avó. Tirou o tabaco e as mortalhas e enrolou um fino cigarro calmamente. Fumava um ou dois por dia, quando fumava. Já tinha dezassete anos mas não queria imaginar o que se passaria se os pais chegassem a sabê-lo. O pai nunca o fizera e várias foram as alturas que o magoara, recordando-lhe irresponsavelmente a deficiência, ao dizer-lhe que, para se ter vícios, há que poder assumi-los. Para não dar nas vistas indo à loja do Beites comprar o tabaco, pedia a um “velhote” seu amigo, o Salvador, para lho trazer de Melgaço quando ia à feira. Tinha confiança nele pois provara-lhe, mais do que uma vez, que podia ter. Era o seu maior amigo, apesar da enorme diferença de idade. “Ê co’s mais belhos que s’aprende”, disse, quando os seus “colegas” lhe fizeram a observação.

O Salvador era um homem enigmático que sabia fazer de tudo. Além de campónio, desenrascava-se como carpinteiro, como ferreiro, como pedreiro e mesmo como veterinário. Estava sempre pronto para ajudar quando necessário. O lugar não podia passar  nem era o que é sem ele. Apareceu um dia remoto, ainda um jovem homem, ao lugar e ali ficou. Começou por comprar um velho e abandonado cortelho, um pouco apartado do lugar, que, pouco a pouco, foi remendando. Tanto à volta como por dentro, era um autêntico bazar. Guardava e coleccionava tudo meticulosamente. Aquele barraco era o símbolo da sua existência, onde o passado se manifestava com endiabrada tenacidade. Sério, inimigo dos desvios e da espontaneidade, vivia sozinho conservando misteriosamente o segredo sobre a sua origem e as razões da sua vinda para um lugar perdido como aquele.  Particularmente enigmático, como se estivesse fora do Bem e do Mal, apesar de não ir à igreja, nunca ninguém o ouviu dizer fosse o que fosse a favor ou contra a religião. Toda a gente lhe tinha um enorme respeito e lhe expressava grande gratidão pelos serviços prestados.

Encostado ao eucalípto, o Armindo saboreava o cigarro com lentor, fazendo render ao  máximo o prazer que este lhe exalava a cada chupadela. Lembrou-se duma promessa que lhe fizera o Salvador e riu-se. Como que perdidas, grossas gotas de chuva, que faziam estalar as folhas meias secas do eucalípto, caiam-lhe, esporadicamente, no velho chapéu de feltro que lhe cobria a cabeça.

 

(continua)