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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FESTA DA LAMPREIA IX

melgaçodomonteàribeira, 07.03.13

 

 

   — A instrução é uma razão e uma obrigação suplementares para não violarem as leis. A instrução e a cultura são uma grande chance, que nem todos têm, para podermos perceber o Mundo e vivermos em harmonia e comunhão. Como é que vocês querem, um dia mais tarde, ser eventualmente chamados para desempenhar funções relevantes, no seio de instituições que hoje desrespeitam  ? Não pode ser ! Creio que sou claro, ou não ?

   — Como a água – retorquiu o João.

   Tive de desviar o olhar da cara do tipo e esforçar-me para reter o riso que me tentava.

   Bufou docilmente. Seria pela resposta ou por estar a exaurir ? Tanto nos dava. Silenciosos, esperámos. Fez estalar os dedos das mãos. A missa estava dita. Respirou profundamente e cruzou os dedos, por cima da secretária desta vez. Levantou em seguida a cabeça e estudou atentamente o tecto, à procura de uma solução, como se estivesse face a um dilema. Lembrei-me que já vira esta cena múltiplas vezes em diversos filmes policiais.  Era a hora da verdade. Tinha uma  importante sentença a arbitrar.

   — Errar é próprio do homem, como devem saber. Toda a gente tem direito a uma segunda oportunidade. Espero, para vocês, que seja a primeira e a última vez. De outro modo, as consequências seriam bem mais fastidiosas. Perceberão que não vale a pena perguntar-lhes se fui claro.

   O homem tinha humor. Não valia a pena, não. Consentimos com a cabeça. Já sabíamos qual era a repercussão.

   — Não sei se é a decisão mais adequada, mas vou ser clemente com vocês. Desejo, unicamente, não ter de deplorá-la um dia. Mas isso, só o tempo mo dirá.

   Esperou uma reacção de reconhecimento ou, pelo menos, de alívio da nossa parte. Nada. Ficámos inexpressivos, como até ali.

   — É evidente que conto com a vossa absoluta discrição relativamente à minha determinação. Creio que é inutil dizer-lhes que nada deve transpirar daqui.  Nem há razões para tal, não é verdade ?

   Aquiescemos naturalmente. Nada tínhamos que agradecer. O favor era vendido  bastante caro. Para o Pachorrego e para o Pepe o preço fora o mesmo: o primeiro vira o seu açambarcamento pelos pides aumentar e o segundo sabia que, um dia, estava sujeito a ter de exercer os seus talentos como pintor de automóveis gratuitamente. No nosso caso, era como um investimento a longo prazo que não necessitava de capital inicial. Um futuro engenheiro e um futuro qualquer coisa eram sempre uns bons trunfos nos momentos propícios ou necessários.

   Com a mão aberta, indicou-nos a porta. Levantamo-nos e saimos sem uma palavra. O móvel que estava por detrás dele ia ter mais duas fichas nas gavetas com as letras C e L.

   Nenhum de nós imaginava que, dentro de um ano, a instituição que ele representava e outras que defendia, deixariam de existir, levando-lhe por água abaixo a rede de interesses.

   Passados uns dias, eu e o Pepe encontramo-nos à noite no café Estrela com o Pacho. A conversa depressa derrapou para a peripécia que, na adega do Telmo, o tinha contrariado.

   — Num tens vergonha, és um chupista de merda. Num poupas ninguém. Mas, agora, se t'apanham em Arbo Alfredo... – preveniu-o o Pepe.

   — E, por cima, estragou um quilo de café – acrescentei.

   Acabou a aguardente que lhe restava e disse-nos seguro de si:

   — Num vos preocupeis comigo qu'eu sei desenrascar-me. Ide mas é perguntar ó Daniel quanto pagou pela lampreia e, depois, dai-me notícias. Ainda tendes muito qu'aprender, rapazes – concluiu.

   A intonação da voz e o cintilar malicioso dos olhos lembravam-me qualquer coisa. E, curvado como sempre, saiu do café.

   Olhei para o Pepe, receoso. Creio que, nesse momento, compartilhava comigo o abominável pressentimento que me invadira.

   — Ai, ai, tu queres ver qu'ele fodeu-nos ?

   O Pepe não imaginava quanto estava certo.

   No outro dia, fui à loja do Daniel. As lampreias não custavam mais de seiscentas pesetas. Vígaro maquiavélico ! Confessou-nos, mais tarde, que combinara tudo com os indivíduos dos dois bares enquanto nós ficáramos na praça a admirar os ranchos. Comeu lampreia à nossa custa ! Lembrei-me, então, das palavras que ele pronunciara quando estávamos com o Daniel no café: "... o último que me fodeu num nasceu onte..." Nesse momento, já a burla estava em marcha. Em parte, a culpa fora nossa pois não cessáramos de provocá-lo. Não obstante, o Pepe tinha mais do que razão quando dizia: "este gajo é mesm'um cabróm".

   Não sabiamos por que razão ainda o frequentávamos. Já tínhamos dado voltas e mais voltas à cabeça para tentarmos elucidar a perseverança e o gosto que tinha pela vigarice sem obtermos resultado algum.

   Foram os anos, unicamente, que o amainaram. Hoje, passa os dias à porta do que foi a sua barbearia, sentado numa cadeira. É um ponto estratégico por onde quase toda a gente é obrigada a passar. Vive com o rico passado, com as reminiscências e com a visita ocasional dos numerosos amigos que, apesar de tudo, lhe são fiéis. Para nós que o frequentámos, faz parte de uma espécie endémica. Ele e o castelo são os dois monumentos de Melgaço mais conhecidos. Os seus numerosos feitos de dolo, únicos no género, contribuiram para difundir o nome da Vila e mereciam, consequentemente, uma homenagem e um reconhecimento sem par da parte dos melgacenses.

 

Junho de 2009

 

A. El Cambório