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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FESTA DA LAMPREIA VIII

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Bomba de gasolina do Pigarra

 

 

   Em menos de meia hora deixou-nos junto da bomba do Pigarra, em frente do posto fronteiriço espanhol. Não havia ninguém. Do lado  português, na casota colada à pontinha, encontrava-se um guarda fiscal. Viu o Pachorrego e riu-se. Dissemos-lhe de onde vínhamos e, sem mais, mandou-nos seguir.

   Subimos, rumo a São Gregório, acompanhados pelo canto refrescante da água do regato. A rua Verde levou-nos à capela. Fomos bater à porta do senhor Augusto Seixo, o taxista do lugar.  Disponível de dia e de noite, não conhecia domingos nem feriados. Dizia-se mesmo que dormia vestido. Às três da madrugada estávamos na Vila.

   Quando me levantei na terça-feira de manhã, a minha mãe deu-me o recado. Tinha vindo um guarda republicano dizer-lhe que me devia apresentar de tarde no posto fronteiriço do Peso, munido do passe que pedira no domingo passado. O passe ! Esquecera-me completamente dele.

   Fui apanhar a camioneta das duas à Calçada. A barbearia do Pacho estava fechada. Ao fundo da camioneta sentado, o João. Também se esquecera de dar a entrada ao passe. Estávamos apreensivos. Nunca se sabia do que eram capazes os pides.

   Íamos na recta final da estrada do rio, donde já se avistava o posto, quando discernimos o Pacho e o Pepe que desciam as escadas. O esquecimento fora geral. Uns metros antes de nos cruzarmos e sempre em andamento, o Pacho mormurou-nos :

   — Passastes sozinhos pelo regato, percebestes ? Id'ide, qu'ides ouvir sermóm e missa cantada.

   A mixórdia não devia ser muito problemática, senão tinha-nos prevenido. Quanto a dizermos que passáramos no regato era evidente que não íamos incriminar o amável guarda fiscal.

   Subimos as escadas e pouco ou nada gostamos do olhar que o polícia nos deitou quando entramos. Não era o mesmo que nos tinha feito os passes. Devia ter uns trinta anos. A idade de querer ganhar galões. Acompanhamo-lo para um reduzido compartimento, situado por detrás do balcão onde carimbavam os passaportes. Sentou-se numa confortável cadeira de braços, por detrás de uma secretária, e indicou-nos duas outras, normais, para nós. Detrás dele, do lado direito, uma cómoda com uma dúzia de gavetas. Pela fachada, via-se que o conteúdo estava guardado por ordem alfabética. O ficheiro, certamente.

   — Vocês sabem porque é que estão aqui, não é verdade ?

   Abanamos a cabeça afirmativamente. Mostrou-nos os passes que lhe tínhamos dado quando chegamos e, apontando com o dedo uma linha do fundo, perguntou :

   — O que é que diz aqui ? - não esperou resposta - Sabem ler ou não ? "Este passe é válido vinte e quatro horas" ! - e martelou bem "vinte e quatro horas".

   Silêncio. Optamos pela táctica do simplório. Pegou numa das várias esferográficas que, juntamente com alguns carimbos, decoravam a secretária, e fê-la deslizar entre os dedos da mão direita.

   — Por onde passaram ?

   Deixei responder o João, era o mais velho. Respondeu o que o Pachorrego nos dissera.

   — Pelo regato ? - admirou-se - Com o Alfredo Pachorrego, sem dúvida.

   Devia ter uma séria contenda com este. Fixou atentamente o João que, antes de responder, deixou propositadamente o silêncio prolongar-se. Queria que o polícia vacilasse, fazendo-lhe crer uns instantes que o silêncio era  sinal de resposta afirmativa.

   — Eu e o meu colega só conhecemos o Pachorrego de vista. Não temos confiança com ele. Passámos unicamente os dois no regato.

   Ainda bem que no dia anterior o polícia de serviço não nos quis fazer um passe para todos! Dissera não em vez de "num" ou "nam", à maneira da Vila. O efeito procurado foi alcançado. Deu uma ligeira tossida. Ajeitou-se na cadeira, pousou os cotovelos nos braços desta e cruzou as mãos, brincando com os polegares. O olhar passava lentamente de um para o outro. Sustentando-lho, esperamos com calma e indiferença. Tínhamos tempo.

   — Recapitulemos. Um, não deram entrada aos passes no prazo estipulado. Dois, entraram ilegalmente no território nacional – fez uma curta pausa – Neste país existem instituições com leis que há que respeitar, que honrar. Eu faço parte de uma delas e a minha função é velar para que assim seja. Por causa de uma festa, infringiram a lei e arriscaram-se a uma multa consistente. Não sei se me fiz perceber. Que seria de nós se cada um pudesse fazer o que lhe apetece ? Digam-me !

   Calou-se. Fora o sermão. O seu mestre, o indígena de Santa Comba, podia repousar consolado. Os discípulos asseveravam elegantemente. Dei aos ombros. Que percebesse o que  quisesse. O João ia  deitar a mão aos caracois  da nuca  mas desistiu. Era  uma  falta de  atenção,  devia  ter pensado. Limitou-se a coçar a cabeça e a bocejar imperceptivelmente.

   — O que é que vocês fazem ? - indagou, ao constatar a nossa inércia.

   — Eu ando em engenharia, no Porto - disse o João.

   — E eu no liceu, em Braga.

   Pegou novamente na esferográfica e, pausadamente, bateu com ela na escrivaninha uns longos segundos. Era dono da situação. De certo que procurava as palavras para ripostar. Não tardou em encontrá-las.

 

(continua)