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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FESTA DA LAMPREIA VII

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Foi a vez do cabo da guarda civil que, logicamente, levou a conversa para o contrabando.

   — Si no fuese España, en Portugal se moría de hambre, no ?

   Perante o nosso ar abstruso, incrédulo deu uma estridente gargalhada, mostrando uns dentes amarelados pelo tabaco e, com um franco sorriso, disse para nos sossegar:

   — Bueno, estoy bromeando, no será así tanto. Pero mucha cosa marcha hacia allá.

   Ocupava o bom cargo para saber do que estava a falar. O escudo valia quase o dobro da peseta,  fazendo com que muitas coisas  fossem mais baratas em Espanha. Por isso, bastantes produtos, principalmente alimentares, vinham de lá, de contrabando. Era o caso do azeite, da pescada e do polvo congelados, entre outros. No outro sentido, camiões de café Sical passavam à noite pela fronteira de São Gregório, depois desta fechar para o comum dos mortais. De ambos lados do rio, e havia longos anos, o contrabando, além de ser muito mais rentável do que o trabalho dos campos, fazia parte da essência imutável dos raianos.

   O "alcalde" tirou um maço de notas do bolso para pagar os seis conhaques. O Alfredo empurrou-lhe o braço com firmeza.

   — Quem convidou fui eu, quem paga sou eu. E num vale a pena insistir, "alcalde". Pagará quando for a Melgaço.

   Ui ! Eu, o Pepe e o João olhamos uns para os outros, intrigados.  Não acreditávamos no que ouvíramos. Depois duns momentos, os dois homens estenderam-nos a mão afavelmente e foram-se. Ninguém falou. Inquietos, estávamos longe de perceber o intento do "jornalista". Não íamos tardar em sabê-lo. A única certeza que tínhamos era que, quando o "alcalde" fosse à Vila, o Pacho não deixaria de o depenar.

   — Num é nada mau o Carlos I. Quereis outro, rapazes ? Aproveitai qu'é festa e a lampreia pôs-me bem disposto.

   Não quisemos. Pediu outro conhaque. Estávamos na expectativa, intrigados. Em dois tragos expediu-o. Deu uma olhadela à sala e disse-nos, distraídamente :

   — Sai um de cada vez, pessoal, como se nada fosse.

   A apreensão evaporara-se tão rápido como se instalara. Este indivíduo era mesmo pérfido, indigno, impossível ! Não sabia, ou não queria saber, o que era um princípio, o que era ser honesto. A vigarice devia ser um culto, a sua religião. Era verdadeiramente impenitente !

   A confusão era tanta que, provavelmente, os do café não dariam por ela. Mas também imagino a cara do "alcalde," ou a do cabo da guarda civil, se no dia seguinte lhes dizem que ninguém pagou. Ri-me, nervosamente. Apetecia-me esbofetea-lo. O João, sério, sem lhe tirar os olhos de cima, começou a enrolar a mecha de cabelo à volta do dedo. Se calhar, nem o via. Como a mim, pensamentos insípidos deviam encher-lhe a cabeça.

   — Ai, ai, este gajo é mesm'um cabróm !

   O Pepe não ia por quatro caminhos.  Seguiu-se o riso do pica-pau, mais alto desta vez. Algumas caras viraram-se. Não sabíamos que decidir. Respondeu-lhe o João, desdenhosamente, depois de nos lançar um olhar furtivo.

   — És incorrigível, pá, num há meios ! Sai um de cada vez, mas tu és o último, Alfredo !

   — Num há problemas. Toc'ándar, pessoal.

   Não hesitou. Assim foi. Saímos sem qualquer dificuldade. A meia noite não estava longe. Fundimo-nos no baile. Foi um martírio. Na praça, devia haver cinco vezes a população total de Arbo. Ainda que descontentasse de novo os automobilistas, até na estrada se dançava. Só lhes abriam a passagem depois de várias apitadelas e berros. Então, batiam-lhes na capota com a mão aberta  ao mesmo tempo que os  apupavam.  Choviam  as injúrias. E, como de tarde, chegava a haver pancada. Brincadeiras sem quaisquer consequências aparentes. O Pacho rapidamente desapareceu com alguém. Fomos ondulando de um lado para o outro, segundo os  empurrões que nos iam impingindo.

   Os "Cunters" interpretavam todo género de música. Da cúmbia ao paso-doble, passando pelo chachachá, o tango, o rock'n'roll, a rumba, a rancherada, a variedade espanhola... O que tocavam, tocavam-no bem. Eram quase vinte em cima do palco. Uma verdadeira orquesta.

   À meia noite, interromperam o baile e deitaram um belo fogo de artifício que admirámos com manifesto agrado. No final, ficou-me a doer a nuca uns minutos. Quase que deitaram o fogo por cima da praça... Recomeçou o baile. Mal sabíamos dançar mas, aproveitando a confusão e os empurrões, pudemos "botar" umas cúmbias e uma rancherada sem passar por paralíticos. O resto era grego, para nós. Dei uns bons arrotos. Dançar facilitara-me a digestão.

   O Pachorrego não tardou muito em aparecer. Passava da uma e,  pausadamente, começamos a não sentir as pernas. Dentro de pouco, descampávamos. O Gúlin não tardaria em aparecer, mas não dava para arriscar e voltar ao café. Amaldiçoamos o Pachorrego. Foi procura-lo enquanto esperávamos no "San Jenjo".

   Estávamos a ficar inquietos e a imaginar o pior quando os vimos  passar a porta. Um colega do Gúlin tinha-se ausentado com uma "chavala" para um canto sossegado. Num caso destes, a espera é justificada.

 

(continua)