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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FESTA DA LAMPREIA VI

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Alfredo do Paço mais conhecido por Pachorrego

 

 

   — Que bem me soub'esta lampreia, rapazes ! – disse-nos com aparente êxtase e admiração o Alfredo – Nem podeis imaginar ! Num me lembra de me ter sabido tanto !

   Ninguém respondeu. Estávamos em letargia, estávamos a digerir. Eu não ouvia ninguém, pensava. A gente passava diante do café e, automaticamente, olhava para quem lá estava. Eram pessoas simples, trabalhadoras, que só mudavam de roupa aos domingos. As mais idosas de entre elas eram camponeses. Para estes casais e para os pais, quando estes ainda podiam andar, as festas e a missa dominical eram a única ocasião de sairem juntos. A partida de cartas semanal entre amigos, num bar do "pueblo", aos domingos de tarde, era o exclusivo  e o mais apreciado momento dos homens.  Entre duas partidas, falavam das dificuldades que um ou outro encontrava na vida diária e aconselhavam-se mutuamente. Apesar das terras ali serem mais generosas do que noutros lados, o trabalho dos campos não passava de um paliativo; o remédio era migrar ou imigrar. Assim, muitos jovens iam trabalhar para as cidades galegas mais importantes ou para as outras grandes cidades espanholas. Os mais corajosos, desenraizavam-se e iam enfrentar todas as dificuldades que se podiam encontrar numa terra alheia e com uma língua desconhecida. Por isto, muitas famílias passavam as festas incompletas. As coisas eram similares de ambos lados do rio.

   Ouviu-se o "un dos, un dos" característico das orquestas e dos grupos musicais. Estavam a regular o som dos microfones e o baile não ia tardar em recomeçar. Principiei a sair da minha letargia. A praça estava a encher-se novamente. Apesar do alarido, as andorinhas, numerosas na praça, passavam por cima da gente em vôo planado e faziam um chilreio enorme. O sol deitara-se mas a gente estava mais quente do que de tarde. O verdinho, em qualquer lado, fazia andar e cantar toda a gente.

   O entorpecimento provocado pela lampreiada e do qual acabara de me liberar lentamente, impedira-me de reparar na ausência do Pachorrego. Estava encostado ao balcão a falar com o Gúlin de Padrenda e uns amigos. Conhecia-o da Notária. Vira-o repetidas vezes no bar do cinema. Diante do Pacho, uma copa. Não havia dúvidas sobre o pagador. O Pepe disse-me que lhe tinha ido pedir boleia para todos. Claro ! Nada fazia ao acaso e sem proveito. O Gúlin era carteiro em Padrenda. Sucedera ao pai que, agora, ajudava a mulher na "tienda" que lá possuiam. Quando havia uma festa (estava em todas) ou que o filho queria sair com uns amigos, emprestava-lhe a carrinha que, ordinariamente, utilizava para os serviços da loja. Alto e forte, sempre de  peito bem saido, era um grande e provocante brincalhão. O pai tinha imenso gosto nele. Além de ser filho único e tardio, contava que se casasse com a "maestra" da aldeia, com quem namoriscava há tempos.

   O Alfredo veio sentar-se.

   — Está tud'arranjado, pessoal. À uma e meia, encontramo-nos aqui no café. Deixa-nos ficar na Ponte, junto da bomba do Pigarra. Os conhecimentos têm de servir pr'alguma coisa, num achais ? –  gostava de mostrar que tinha relações, amizades.

   O Pepe respondeu-lhe com o riso trocista do Woody Woodpecker, o pica-pau dos desenhos animados, que imitava perfeitamente. No meio da algazarra geral, passou despercebido.

   Fui pagar, era a minha rodada. Eu a sentar-me e o Alfredo a chamar bem alto, virado para a porta:

   — "Alcalde", "alcalde", por aqui !

   Dois homens sorridentes, um deles cabo da Guardia Civil, de chapéu de três bicos na cabeça, aproximaram-se de nós. Pelo estilo, via-se que estavam abituados a apertar mãos e a olhar de cima. Entre os dedos fumegava-lhes um bruto "puro". Tinham os olhos brilhantes e a tez rosadinha, premissas de nobre funçanada. O "alcalde", ao mesmo tempo que cumprimentava o Pacho, informava o guarda civil.

   — Es Alfredo, el "periodista" de Melgaço ! Qué tal, hombre ?

   À medida que o "alcalde" nos apertava a mão, o Pacho ia fazendo as apresentações. O João já era engenheiro, o Pepe era proprietário de um stande de venda de automóveis na Vila (coisa que nem existia) e eu andava na faculdade de direito, em Coimbra. Não piamos, tanta foi a surpresa. Depois das cerimónias de cortesia, insistiu com as duas autoridades para que se sentassem e tomassem algo na nossa companhia, o que os dois homens, complacentes, aceitaram amavelmente.

   Vieram seis conhaques Carlos I, o melhor do género. Entre os golinhos do famoso conhaque e as chupadas no não menos conhecido havano, os dois dignitários escutaram o Pachorrego expor-lhes o trabalho que executara como jornalista correspondente do jornal "A Voz de  Melgaço". O programa dos dias de festa fora publicado na edição do dia quinze. Conjuntamente, um artigo que fazia um majestoso e destacado elogio a Arbo e à região,  à sua gastronomia e, em particular, à lampreia do rio Minho. No início de maio, outro artigo daria conta do desenrolamento e da afluência das festas. O "alcalde" ficou hipnotizado pelo relato, movendo apenas o traseiro na cadeira, com o qual fazia um balé. Os elogios que fez ao Pacho eram superlativados. Até gaguejava ao procurar as palavras para lhe exaltar e gratificar o trabalho. O Pacho comprometeu-se a enviar-lhe as duas edições do jornal. A figura não sabia que os seus favores tinham um gosto amargo. Era tarde, o que tinha comido e o que tinha bebido saciara-lhe o estômago, mas, quando o apanhasse na Vila, até a alma lhe havia de comer.

 

(continua)