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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FESTA DA LAMPREIA II

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Ao empreendermos a segunda curva a partir dali, avistamos, do lado esquerdo, vários carros estacionados diante de um alto e comprido muro de pedra que escondia uma casa deixando unicamente entrever uma parte do telhado.

    Quase a meio do muro, um imponente portão de ferro forjado. A casa estava isolada no meio do pinheiral. Apenas nos tínhamos aproximado do portão que um cão se pôs a ladrar delatando a nossa presença. No interior, um amplo quintal onde o mostrengo, de pêlo curto e preto, preso por uma corrente a um arame, podia correr de um lado para o outro do pátio. Devia pesar perto de cinquenta quilos. Impunha respeito. Ao fundo, a casa, também de pedra. No rez-do-chão, três grandes portas duplas das quais duas estavam escancaradas. Por uma, via-se um carro de bois, um arado moderno, um monte de lenha cortada e sêca e diversos utensílios do campo; pela outra, várias pipas e pipotes, de dimensões sortidas, dispostos lado a lado e a meia altura. Do tecto pendiam dois presuntos e algumas lampreias secas. A adega estava guarnecida. A terceira porta, pelos restos de estrume e palha que se podiam ver diante, sem dúvida que era a da corte. Por cima, era onde habitavam.

   Abriu-se uma porta no primeiro andar e vimos aparecer um homem duns quarenta anos, cabeça desguarnecida e queimada pelo sol.

   — Qué passa ?

   Foi o Pacho quem respondeu, falando alto, para ser ouvido, pois o cão não se calava.

   — Nem conheces os amigos nem nada. Estou a ver que num foi só o cabelo que perdestes, "aldeano" !

   O homem, bastante corpulento, ao reconhecê-lo riu-se e, levantando os dois braços, berrou :

   — É portugueses dum caralho ! Entonces os gardas deixaramvos pasar ?

   Ao mesmo tempo desceu e mandou calar o mastodonte, apontando-lhe uma casota que se encontrava na esquina direita do portão. Abriu-o, cumprimentou-nos e mandou-nos entrar.

   — Bem sabes, Telmo, que quem anda comigo pod'andar tranquilo. Onde quer que va, tenho sempre carta branca, meu amigo – sempre o mesmo gabarolas, o Pacho.

   — Bueno,  bueno, deixate de tretas, vacilon, qu'á ti coñeço t'éu ! É logo, venís pr'á festa, ou ? Hombre, claro que si ! – concluiu.

   O homem falava uma miscelânea de galego e de castelhano.

   Olhamos todos para o cão, deitado dentro da casota e que não tirava os olhos de nós. Reparando que hesitávamos, incitou-nos:

   — Entrade, qu'ô can solo morde cando cerr'á boca - e riu, satisfeito do gracejo.

   Entramos timidamente, sem nos afastarmos muito dele.

   — Vimos à festa e resolvemos vir fazer-te uma visita – replicou o Pacho - Olha, conheces este ? – apontou para o Pepe que se pôs a sorrir.

   Não, não o conhecia. Era natural. Vira-o em Melgaço, um par de anos antes deste ir para a Guiné, onde passara perto de três anos. Regressara há mais de um ano. Fisicamente nada tinham em comum, à primeira vista. Portanto, a semente era a mesma, embora se tivesse desenvolvido em terras diferentes. O Jacó era um sementeiro excepcional.

   — É o teu irmam, caralho, o pintor. O que trabalha com o outro teu irmam que tem uma garage, o Alípio...

   Eram os três meios irmãos. E, designando o João:

   — Est'é o teu primo João, o do Horacinho !

   — Coño, que non vos conocia ! Fai tanto tempo... É logo ?

   A emoção e a entoação  não eram fingidas. Via-se-lhe nos olhos. Fazia parte de uma numerosa família, dissipada pelos quatro cantos da Terra que, apenas no outro Mundo, e pela primeira vez, se reuniria na sua integralidade.

   Os dois irmãos e os dois primos voltaram a apertar as mãos, mas, desta vez, com ênfase e amizade, dando mutuamente umas palmadinhas de carinho nas costas.

   — Telmo, temos uma coisa p'ra ti - anunciou o Pacho, prontamente. – É a prova que num viemos por azar.

   Temos ? Mau sinal. Olhou para nós e piscou-nos o olho.  Não foi nada, mas mesmo nada do nosso agrado. Conhecíamo-lo demasiado bem. Retirou o casaco e entregou-o ao João. No sovaco esquerdo, preso com um fio ao ombro, trazia um quilo de Sical. Fez deslizar o fio do ombro até à mão, desfez o nó que atava o saco de café e entregou-o, em seguida, ao Telmo. Este, confuso, agradeceu como pôde. O Pacho apanhara-o de surpresa.

   — Bueno, invitabavos arriba pero xa non cabemos nosoutros... Hay moita xente da família é amigos...

   O homenzinho não sabia como se desculpar. O que podia fazer um quilo de café!

   — Tranquilo, Telmo, tranquilo. Num viemos p'ra t'incomodar. Olha, traz-nos umas tigelinhas qu'a tu'ádega com as portas abertas, parece qu'está  chamar por nós.

 

(continua)