FESTA DA LAMPREIA I
Ano modificado
Estávamos a chegar ao final de abril. A primavera manifestava-se com exuberância. O sol, deslumbrante e acariciante, convidava para o passeio. A vegetação, a nossa maior riqueza, já começara a desabrochar e a trajar-se com cores das mais lindas e sortidas.
Domingo. Combinando a beleza do dia e a voracidade que o pensamento da lampreia nos inculcava, eu e o meu amigo João resolvemos ir à sua festa, a Arbo, em frente ao Peso.
Às duas da tarde, depois de comermos com ligeireza, apanhamos a camioneta que ia para Monção. Saímos no Peso, junto do café do Castrejo. Fora, havia duas mesas, uma de cada lado da porta de entrada. À sua volta sentados, os habituais fregueses que tiravam proveito da refrescante sombra engendrada pelos idosos e frondosos plátanos. Entramos para tomar café e dar uma vista de olhos, antes de nos metermos a caminho, rumo ao rio. Transpusemos a porta e esperamos uns segundos, tempo necessário para os olhos se adaptarem à penumbra. Numa esquina, sentados à volta duma mesa, deparamos com o Alfredo Pachorrego e o Pepe do Jacó, primo do João. Abancamos com eles e pedimos café. Também iam à festa e decidimos fazer a caminhada juntos.
Assim foi. Chegamos ao posto que fazia ofício de fronteira e subimos as escadas. Como ninguém tinha passaporte, pedimos um "passe". Não foi com muita vontade, mas acabaram por nos fazer um a cada. Podiam ter-nos feito um só, para os quatro, que nos ficava mais barato, mas não. Já era um favor deixar-nos passar, disseram. Naquela época (em pleno Caetanismo), como sempre fora, tudo se vendia, principalmente os favores. Por um lado, foi graças à presença do Pachorrego que nos "deram" os passes. Este, além do palavreado, fazia parte da família dos pides, indirectamente. A validade dos passes era de vinte e quatro horas.
Aproximamo-nos do rio onde havia mais quatro pessoas à espera. A batela estava "arrimada"do lado de lá e dela saía gente. Uma vez do lado de cá, entramos os oito nela e, sem tomar fôlego, o homem voltou a remar energicamente no sentido contrário. Havia que ser sólido e vigoroso para vencer a robusta corrente provocada pelas numerosas pesqueiras e pelos colossais penhascos que adornavam aquela parte do rio. No lado espanhol, não vimos um único carabineiro. Dia de festa, ao contrário dos portugueses, a passagem era livre.
A pé, chegamos à estação. O barulho proveniente dos dois bares ali existentes, era uma amostra insignificante do que iríamos encontrar. Dali até à vila, em cima, tínhamos para uma boa caminhada, sempre a subir. Com calma, fomos andando. Havia muito que estávamos habituados às longas marchas. À frente, o Pepe e o Pacho, sempre curvado. Os braços pendiam-lhe no vazio fazendo-o parecer um gorila quando caminhava. Sempre o conheci com esta postura. Diziam que era devida ao peso da enorme barriga. Tinha a segunda maior da Vila, unicamente ultrapassada pela do Negos. Ninguém se admirava que tivesse de se pôr diante dum espelho para poder ver o membro genital. Atrás, eu e o João. Andámos até um sítio onde a estrada bifurcava à esquerda pelo meio de um pinheiral. Era um simples caminho de terra pelo qual dois automóveis teriam grande dificuldade em cruzar-se.
— É por aqui – disse o Pacho - Por aqui é mais perto, é um atalho.
Sem qualquer contestação e desleixadamente, seguimos o Pachorrego. No céu não havia uma núvem e, vista a hora, havia muito pouco que o sol abordara a descida. Os pinheiros iam-nos resguardando dos raios solares. A marcha e o calor, apesar de moderado, não tardariam em humedecer-nos a testa. Aqui e ali, ouviam-se estalar pinhas. O cheiro a resina era pronunciado e omnipresente.
Pouco mais de dez minutos haveria que tínhamos deixado a estrada quando deparamos com montes de tábuas, dispostas em castelos, a secar. Logo a seguir, um hangar bastante grande onde, ao lado, dezenas de troncos deviam esperar a vez de passar pelos dentes da serra. Um atrelado carregado de troncos cortados para lenha jazia ao lado dos restos da carcaça de um carro cuja marca já não se podia decifrar. Um gigantesco monte de ripas e de cascas de pinheiros completavam o quadro consternador.
— Ai ai ! Num é pr'áqui que mora o méu irmam Telmo, Alfredo ? – perguntou o Pepe – Tinham-me dito qu'era perto duma serraçam...
— É pouco mais à frente. Trabalha p'ra esta serraçam. Vamos visitá-lo, nam ? É festa ou que caralho ?
Faríamos uma paragem na casa do meio irmão do Pepe e, logicamente, meio primo do João. O Jacó não devia saber quantos filhos tinha em Portugal e na Galiza. Os conhecidos ultrapassavam a dúzia.
(continua)