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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

O SE TÓNIO IV

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Gave

 

   O homem não reagiu. Então, voltou a berrar-lhe ao mesmo tempo que, guardando uma certa distância, lhe mexia na barriga com a ponta do pau. Nunca se sabe ! O homem podia ser imprevisível.

   Acabou por abrir os olhos. Não sabia onde estava. Olhou para a minha mãe que voltou a repetir-lhe a injunção. Lentamente, pôs os pés no chão e sentou-se na cama. Só à segunda tentativa é que se levantou. Conseguiu afastar a cortina e saiu aos tropeços pelo corredor. Apenas transpôs a porta, a minha mãe fechou-a e tirou a chave.

   Foi ao quarto do sr. António apagar a luz. Continuava paralisado, na mesma posição. Disse-lhe:

   — A ber se o home nom bem outra bez, sr. António !

   Não teve resposta. Foi deitar-se.

 

   Teve que limpar os olhos com um guardanapo de papel. Eu vivia a cena com ela. O quadro não podia ser mais explícito e extravagante. Pena não ter acordado!

   — Bê lá tu qu'eu nem esperei qu'o home descesse ! Podia ter caido polas 'cadas abaixo !

   Assenti com a cabeça. Perguntei-lhe:

   — E o sr. António, viu-o, hoje de manhã ?

   — Bi ! Chegou ali à porta é dicho-m'a rir: "Ô home foi-s'embora, sra Esp'rança, mas eu nom dormi em tod'á noite!" Nom podia mais, meu filho! Bia-o deitado co'as mans cruzadas porriba do peito, sim mexer, como se nom estubera ali ! Já muito que me nom ria tanto ! – o riso provocava-lhe tosse - Nom sei como nom cagou na cama!

   Encostava a cabeça no meu braço e ria-se. Não me lembrava de ter visto a minha mãe assim. Comprendia-a. Fora corajosa, como sempre. Não se abandona Parada com seis filhos às costas sem o ser.

   — E quem seria o homem, mãe ?

   — Espera que nom t'acabei de contar !

 

   De manhã, apareceu à pensão a mulher do Justino do "Nosso Café", a Fátima. Tinha umas dúvidas e perguntou à minha mãe se não lhe tinha passado nada de especial naquela noite.

   — É porque me bem a mim perguntar isso ? – inquiriu-lhe admirada.

   Um irmão dela fora convidado pelo Zé Esteves, filho do Zéca da Cabana, para vir, no fim de semana, às festas da Peneda, contou-lhe a Fátima. Tinham-se conhecido na Guiné, durante o serviço militar. A irmã, na casa, não tinha cama para ele. Como o cabo Teixeira e a família iam para a Frieira, na Espanha, terra da mulher, onde possuiam uma casa e umas terras que ela herdara, perguntou-lhes se o irmão podia ir dormir à casa deles naquela noite. Deixaram-lhe, pois, amavelmente, a chave do apartamento. Os dois amigos deviam ter passado a tarde e a noite na Peneda a comer e, sobretudo, a beber. Quando chegaram à Vila, quase às quatro da madrugada, estavam num estado deplorável. O irmão apareceu-lhe à casa a cambalear como nunca tinha visto. Com muita dificuldade, acabou por dizer-lhe que fora à casa do Teixeira para dormir, mas que havia lá gente e que o tinham posto fora.  Impossível, pensou ela. E foi verificar, apesar de saber que ninguém podia lá estar. Foi, então, que a imaginação a fez vir perguntar à minha mãe se ouvira algo de anormal naquela noite.

   A minha mãe contou-lhe o sucedido. Ao descrever o indivíduo, as dúvidas que a Fátima tinha esbanjaram-se. O homem, embriagado como estava, quando se encontrou no patamar, diante das duas portas, enganou-se. Em vez de abrir a porta esquerda, abriu a nossa, a que tinha a chave na porta, e foi ter ao quarto do sr. António. 

    A Fátima, envergonhada, insistiu com a minha mãe para que não fosse dado eco ao acontecido.Ao meio dia, quando o sr António estava a almoçar, veio pedir-lhe que  desculpasse o irmão pois este ainda não estava em condições de poder vir fazê-lo pessoalmente.

   — Aquilo nom tub'importância, mulhêr ! – sossegou-a o sr. António, descontraidamente, e com um enorme sorriso - Atê já me tinha esquecido.

   Não tivera importância, não. Ouvir um desconhecido entrar e senti-lo deitar-se ao seu lado na cama, às quatro da madrugada, é coisa corrente, ordinária, claro.  Matreiiiro, se Tónio ! O susto que apanhara não devia de ter sido pequeno. O mais importante, devia pensar, era que não se soubesse. Nem sequer cagara na cama...

   Tive pena não poder contá-lo ao meu amigo, o Zé Castro.

 

   O tempo foi passando e fez o seu trabalho. Puxado pela terra mãe, regressou à Gave onde ainda viveu agradavelmente uns aninhos. Todos os dias, depois de almoçar, dormia uma sesta numa cadeira de balanço. Um dia, esqueceu-se de acordar. Ficou a sonhar eternamente que ia p'rá Fonte da Vila, p'ra uma sombrinha, com uma mulher um bocado peluda nas pernas...

   Um saudoso abraço, se Tónio !

 

   Agosto do ano 2009.

 

   António El Cambório.