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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

O SE TÓNIO III

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Peneda

 

 

   Eram umas festas que sabiam conservar o carácter excepcional que as caracterizava. Gostava delas porque sabia o que ia encontrar. As tendas típicas  de pano com os brinquedos de plástico multicores que me esguicharam a imaginação quimérica da infância, as velhotas que, em barracas improvisadas,  vendiam o café que preparavam e tinham quente por cima de um fogareiro a petróleo e que serviam a aguardente num espesso e enganador cálice (copa), os abundantes cantadores ao desafio e tocadores de concertina que davam a cadência à cana verde...  Nada faltava. À noite, os petromax iluminavam as tendas.

   A minha mãe contou-me que, quando era moça, nas romarias da Peneda, os rapazes, de várias aldeias, desafiavam-se e lutavam com paus para impressionar e conquistar a simpatia  das raparigas. Excitados pelas moças, às vezes, a coisa punha-se séria. Foi a única pessoa que ouvi falar disto.

    Tudo me puxava para aproveitar um dos últimos dias de estio e ir à Peneda. Só ou com colegas, ia saborear uma das muitas apetitosas iguarias, respirando o ar puro das montanhas e observando a onda sem fim de gente hilariante de felicidade.

   O sábio dizia que, para se fazer algo pelo Mundo, devia-se começar por subir à montanha e olhar para ele.

   Passara um fim de tarde e uma noite agradáveis na Peneda. Quando me deitei passava das duas da madrugada de domingo.

   Levantei-me tarde e bebi apenas uma pequena tigela de cevada, na cozinha. Não tinha fome e, além disso, também não tardaria em comer. A minha mãe que estivera a mexer qualquer coisa numa panela, tapou-a, arrumou a escumadeira de que se servira, e a rir-se, disse-me, agarrando-me no braço:

   — Bem-t'assentar ali comigo que te bou contar algo !

   Sentamo-nos ambos lado a lado, num banco de madeira comprido, e esforçando-se para não rir, começou:

   — Olha, inda nom parei desde que me lebantei. Até me deu uma pontada – custava-lhe controlar o riso – Êl tu nom oubistes barulho ont'à noite ?

   Não, não ouvira nada. À noite, a mim e aos hóspedes sentia-nos sempre entrar. Ninguém podia dar um peido sem que ela ouvisse. Eu, apenas me deitava, ficava a dormir. A casa podia cair. Era o desleixo juvenil. Mas, fosse qual fosse a hora a que tivesse que me levantar, o despertador não era necessário.

   Já eu me deitara, contou-me, quando ouviu mexer ruidosamente na porta de entrada. Alguém tinha dificuldade em abri-la. Por fim, conseguiram, fazendo-a bater contra o muro. Quem era, cambaleava e chegou a bater nos lados do corredor. Olhou para o despertador : quatro menos quarto ! A seguir ao quarto dela, do mesmo lado, era o do Sacristão, guarda-fios que fora à terra. E ao fundo do corredor, em frente, o do sr. António Ferreiro que se deitara a seguir a ela. Não havia mais ninguém. Começou a ficar preocupada. Quem fosse, só podia ir para o quarto do sr. António, pois uma cortina servia-lhe de porta. Lembrou-se do filho, o Josué, que viera da França para passar o mês de férias na terra em companhia dos seus. Não era a primeira vez que vinha ficar com o pai, de regresso duma festa. Evitava ir de noite a pé de Pomares à Gave. E como havia a Peneda... Levantou uma orelha e pôs-se à escuta. Normalmente, se fosse ele, falava um pouco com o pai. Nada. Nem uma palavra. Além disso, quem entrou devia vir bêbado. O Josué não era desses. E se tivesse tido um acidente com o carro ? Esperou mais uns instantes, mas, por fim, resolveu ir ver. De outro modo, não podia dormir. Pegou no cabo de uma vassoura que tinha sempre à mão no quarto e, evitando de fazer barulho, foi encostar-se à cortina a ouvir. Grande silêncio. Então perguntou, a meia voz:

   — Êl quem entrou pr'aí, sr. António ?

   Passaram uns curtos segundos.

   — Ôlhe qu'eu nom sei, sra Esp'rança !

   Ainda mais intrigada, afastou a cortina e acendeu a luz do quarto. O sr. António estava deitado de barriga para o ar. Tinha as mãos cruzadas por cima do peito e dos cobertores  que quase lhe chegavam ao pescoço. O olhar tinha-o preso algures no tecto. Não mexia. Parecia um morto.

   Ao lado dele, por cima dos cobertores, e também de barriga ao alto, um homem de menos de trinta anos. Parecia um bicho. Cabelos e barba de vários anos, estava vestido e calçado. Dormia profundamente.

   — Êl quem ê esse home qu'est'aí na cama ? – perguntou a minha mãe.

   — Eu nom lhe sei, sra Esp'rança – respondeu sem mexer.

   Sem hesitar, o cabo de vassoura agarrado com as duas mãos, berrou-lhe:

   — Ponha-se-me lá fora imediatamente, meu senhor, oubiu ?

 

   (continua)