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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

O SE TÓNIO II

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Estranhamos, mas, finalmente, era natural que ficasse admirada. Havia anos que vivia com dois filhos num moinho, perto de Cavaleiros. A indigência em que vivera até que a minha mãe lhe estendeu a mão, tinha-a insensibilizado sentimentalmente. Não podia adivinhar nem imaginar o significado e as consequências que um acontecimento destes podia ter no monte.

   O que ficara a saber permitira-me, mais tarde, compreendê-lo melhor.

   Dois filhos maiores que estavam na França, um casal, tentaram tudo para reuni-los. Chegaram a realizar um encontro entre os dois na pensão. Não conduziu a nada. 

   Fora o Zé Castro que lhe fizera os abreviamentos e começara a tratá-lo por se Tónio quando o cumprimentava, cada vez que o cruzava.

   — É se Tónio, 'tá bom ? – e levantava a mão aberta, como os índios.

   Coisa que não desgostou ao sr. António. Em breve, a juventude tratava-o toda assim.

   Um dia, viu-o em Monção, na rua das Caldas, na companhia de uma mulher. O malandro, logo que o encontrou, aproveitou para caçoá-lo. Estava ele à tardinha no "Nosso Café", sentado diante de um galão, a restaurar-se, depois de ter fechado a loja. O Zé entrou, parou a meio e disse-lhe, prolongando a segunda sílaba da última palavra:

   — É se Tónio, você é um matreiiiro ! 

   E seguiu para a sala adjacente onde se foi sentar ao balcão no primeiro banco. Sabia que o se Tónio não tardaria. Assim foi. Este chegou à entrada da sala e, sério, meio ofendido, inquiriu-lhe num tom seco:

   — Entom que foi, home ?

   O Zé riu ao ver-lhe o ar sisudo e, com simulada expressão admirativa e ciumenta, contou-lhe que o vira em Monção, na companhia de uma boa mulheraça. Então, fez um grande sorriso e respondeu-lhe, querendo mitigar o sucesso:

   — Nom hai nad'áli ! Ê um'ámiga !

   O caso é que este episódio fortuito, mas ufano e lisonjeiro para ele, foi também estimulante. Fê-lo sentir-se normal, idóneo. As cenas  com mulheres iam repetir-se invariavelmente, para a sua e a nossa grande satisfação.

   Uma altura que tínhamos ido tomar café juntos, muito me ri com a que me contou. Disse-me:

   — N'outro dia, estab'eu na loja é beu uma de lá de riba. Qu'ria cumprar uma masseira é nom lhe chegab'ó dinheiro. Er'óm bocado peluda nas pernas, mas papab'ó como sucre ! Entom eu diche-lhe: "Ó mulhêr, dás-m'o que tês é bamos ali pr'a uma sombrinha um pouco é despois lebas a masseira !" Assi foi. Fomos pr'a um campo na Fonte da Bila. Ó rapaz, nom te conto mais!

   Dissera tudo. Deu um toque na parte frontal da aba do chapéu, levantando-o e puxando-o para trás ao mesmo tempo. O sorriso quase lhe fazia tocar os cantos da boca nas desenvolvidas  orelhas. Os olhinhos eram dois traços. Tinha mesmo cara de finório. Tirou um "Provisórios" do maço e acendeu-o. Estava satisfeito, inchado.

   O que acontecera na Gave fora um incidente, um facto acessório do qual ele não tinha responsabilidade alguma. A sua reputação estava feita. Os da Vila sabiam que assegurava. Os gavieiros que ali viviam, de certo que já se tinham encarregado de propagar os seus talentos amorosos até à terra. Que fosse apregoado o mais alto possível e levado às mais longinquas terras gavieiras: a mulher do António Ferreiro pusera-lhe os cornos, mas, por falta de gaita, não fora!

   Não havia três anos que se instalara na Vila e já tinha uma casa quase finda. Situava-se no Rio do Porto e, como que predestinado, ao lado da do Ferreirinho. De dois pisos, preparara a fachada dos fundos com duas enormes montras de espesso vidro. Dariam para establecer qualquer tipo de comércio. Fora para os filhos que mandara construir a casa.

   Passava na Vila o quarto ano. Toda a gente o conhecia, estimava e respeitava. Para mim, era um amigo único. Sabia que podia contar com ele.

   Tinham começado as festas da Peneda. As excursões de portugueses e de espanhóis sucediam-se. O engarrafamento à entrada e à saída do santuário era quotidiano durante os últimos três dias. Os espanhóis, quando regressavam de lá, faziam uma alta no Terreiro da Vila. Como vinham da província de Orense, Melgaço era a única vila que lhes ficava no caminho. A matrícula, assim como o nome lateral da companhia dos autocarros, eram ilegíveis, tanto era o pó. A estrada ainda não fora alcatroada. Os da de Pontevedra paravam em Valença, por onde passavam. Era uma romaria há muito apreciada pelos nossos vizinhos.

   A primeira vez que lá fui, foi com o meu pai. Tinha onze anos. Lembro-me de dormirmos no meio de várias pessoas, num dos cartéis, por cima de um monte de paveia. Éramos todos de Parada.

 

(continua)