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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

O SE TÓNIO I

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Antiga Pensão Parisiense

 

 

   A Pensão Parisiense situava-se na Rua Velha, num prédio de dois andares pertencente ao Teixeira de Monção, cabo da guarda fiscal. Tinha duas grandes portas duplas e uma vitrina no meio. Uma das portas, de ferro, dava para a sala de comer e para a cozinha, que era contígua. A outra, antiga, era de madeira maciça. Por ela, acedia-se a umas escadas de uma dúzia de degraus que findavam num pequeno patamar com duas portas simples diante e outra do lado direito. Esta dava para o meu quarto. Das da frente, a do lado direito dava para um corredor pelo qual se atingiam mais três quartos. O da minha mãe era a meio, à direita. A chave estava sempre na porta, pelo lado de fora, a fim de os hóspedes poderem entrar e sair libremente. Era o primeiro andar. A do lado esquerdo, subindo mais umas estreitas escadas, dava para um apartamento que ocupava por completo o segundo andar e no qual morava o proprietário do prédio e a família.

   O sr António viera da Gave, de onde era nativo e hospedara-se na nossa pensão. Andava  muito perto dos sessenta. Era um homem pacato e sereno. Ponderado, nunca o ouvi levantar a voz a quem quer que fosse. Raras foram as vezes que consegui discriminar-lhe nos traços uma ponta de preocupação ou de irritação. Do chapéu típico dos do monte às botas, do fato à camisa, andava sempre vestido de preto. A única excepção era a camisola interior branca de algodão no inverno. Não sabia se tinha qualquer significado.

   Poucos dias depois de se ter instalado na Vila, alugou os fundos da casa onde o Ilídio tivera a ourivesaria, junto da residência do padre Justino. Ali, montou um comércio onde vendia mobílias rústicas. Eram móveis de pinho bruto, sem pintar ou envernizar, a preços somenos, imbatíveis. Tinha armários, mesas, bancos, masseiras, arcas, cómodas, cadeiras... O estilo de mobílias que, globalmente, era procurado pelos do monte. Ia com frequência à feira a Braga e procurava estilos diferentes, dentro da mesma qualidade, que pudessem engrossar as vendas. Uma camioneta trazia-lhe, em seguida, tudo a Melgaço.

   Tinha uma vida ordinária regulada e rotineira. A sua mesa favorita estava jornaleiramente reservada pois respeitava escrupolosamente as horas das refeições. Estas terminadas, tanto ao meio dia como à noite, ia tomar café e copa de cachaça ao "Nosso Café", exclusivamente.  Um conterrâneo seu, o Justino, que morava ao lado nosso, por cima da gráfica, era quem o explorava.  Uma coisa devia justificar a outra. Nas longas noites de inverno, quando calhava, gostava de enfrentar comigo outra parelha numas boas partidas de sueca. Passávamos momentos agradáveis. Era uma companhia aprazível.

   A meia dúzia de diários que tínhamos (motoristas, guarda-fios) iam, habitualmente, passar o domingo com a família. Ficávamos eu, a minha mãe, a Rosa do Moinho, ajudante na pensão , e o sr António. De tempos a outros, quando a minha mãe sabia que a comida que fazia para nós não era do seu agrado (não gostava de cozido e era do monte), fazia-lhe a sua guloseima: uma travessa de pataniscas e duas colheres de sopa de arroz do forno sêco. Regalava-se.

   Comíamos os quatro à mesma mesa uma vez por semana. A conversa desenrolava-se, quase sempre, entre a minha mãe e o senhor António. Falavam do monte, da existência que tiveram, das suas aldeias, de pessoas que conheciam mutuamente, com quem tinham negociado ou trabalhado, que ajudaram ou por quem o foram... Falavam da vida e conseguiam fazer-me vivê-la. A conversação continuava mesmo depois de termos comido e a Tia Rosa ter levantado a mesa. Eu escutava atentamente e com enorme satisfação. Ensinavam-me muitas coisas. Para mim estas conversas singelas eram um painel patente, falante. Eram a expressão genuína da imensa afeição que sentiam pela terra ingrata que os viu nascer e pelas pessoas que nela viviam. Só não gostava quando o sr António, durante a conversa, fazia uma curta pausa e, virando-se para mim, dizia: "Tu inda nom tinhas nacido." E quê, apetecia-me perguntar-lhe às vezes ? Tinha-lhe demasiado respeito para tal.

   Na Gave, além de trabalhar as terras que possuia, batia o ferro. Por isso, lá, conheciam-no por António Ferreiro. 

   Portanto, se decidira abandonar a sua terra mãe e viver na Vila, era porque a vida, até ali aprazível, fora cambiada por um infausto e severo destino. No princípio, escassas pessoas conheciam a causa da sua vinda.

   Havia poucas semanas que estava connosco. Uma noite,  acabou  de comer, acendeu o "Provisórios" e saiu para tomar o café e a cachaça habituais. Então, a minha mãe, depois de nos ter rogado para não o repetir, contou-nos, a mim e à Rosa do Moinho, o sofrimento e o rasgo profundos que tinham perturbado o homem e o tinham propendido para a Vila: a mulher "trocara-o" !

   — E, por causa disso, veio viver pr'à Vila ? – perguntou a Tia Rosa, admirada.

 

 

(continua)