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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FIFI EM PARIS

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Era o quarto ou quinto dia que estava em Paris. Frio, frio mesmo para quem vinha da terra agreste das serras galegas. Fim da tarde, Tonio chega ao quarto cozinha sala de estar e salão de fumo (faltava a casa de banho que ficava nas escadas entre o terceiro e quarto andar, buraco no chão) e atira com sorriso:

   — Hoje jantamos em casa do vizinho da frente.

   — Porreiro Tonio (e cá para mim… hoje não aqueço cassoulet). Mas o vizinho da frente não é um algeriano?

   Vizinhos na Rue Lécuyer junto da Porte de La Villete. Rua de emigrantes, portugueses do lado direito e magrebinos do lado esquerdo, duas comunidades divididas por 5 metros de pavée. A boa relação do Tonio com o (descobri mais tarde) Mohammed, tunisino, devia-se ao fechar duma cortina sempre que estávamos em casa e garantíamos a privacidade de quem morava do outro lado da rua.

Nós não olhávamos e eles também não.

   — Tonio, por quê jantar em casa do algeriano se passas o tempo a dizer p’ra num ir ao outro lado da rua?

   — Porque do outro lado são arabes, ainda pior que os pieds noir.

   Encolhi os ombros.

   Arabes, pied noir, mas que raio me importava isso tudo; não conhecia um muito menos o outro.

   Subir ao apartement do Mohammed foi o mesmo que ir chez Tonio. O mesmo cheiro entre andares e a mesma falta de luz. O sol quando nasce é para todos, a luz eléctrica em Aubervilliers é que não.

   Mohammed, para meu espanto, era igual a qualquer outro que passava por mim na rua. Então quando dei um passo e fiquei fora da casa, disse para mim: “São mesmo iguais, até no buraco em que vivem”.

   Rolhas saltaram, nem me lembrei (ou será que já conhecia?) de Alá. Bebemos ao nascimento do quinto filho da família de Mohammed.

   No meio de uma cacofonia, luso-arabe-francês apanhei excertos da conversa entre Tonio e o tunisino. Falavam de mim, que ninguém conhecia na rua, o Tonio a dizer que eu só lá estava havia quatro dias, mais p´ráqui mais p’racolá e eu puxei dos meus galões e meti-me na conversa. Em francês, é claro.

   Tinha dito uma ou duas frases quando Mohammed se levantou, parecia um raio, olha para o Tonio e grita:

   — Toi, t’es un menteur…

   Num flash vi o meu amigo a recuar em direcção à janela, sempre era um quarto andar e tombo de arrepiar. Botei a mão a Mohammed e gritei-lhe ao ouvido:

   — Ça c’est vrai, je ne suis ici que depuis quatre jours.

   O homem parou, olhos faiscaram e …

   — Comment est-ce possible que tu parles comme ça?

   — C’est possible parce que je suis étudiant au Portugal et comme je ne veux pas faire la guerre en Afrique j’habite avec mon frére Tonio.

   Se a festa já estava no auge foi ao rubro com o meu discurso. Um português que não corria atrás da bucha para matar a fome, dele e da família, um português que condenava a guerra na sua terra. Bela bebedeira a da casa do Mohammed tunisino.

   Acabou Setembro e as ruas de Paris enchiam-se de neve. O frio cortava as orelhas, bem pior que as madrugadas na terra. Trabalho nada, tentei nos apanhadores do lixo, mas nem a esses faziam papéis. Os árabes apanhavam tudo, concorríamos a ver quem apanhava primeiro contrato de trabalho. Português com dezoito anos e sem documentos não tinha a vida fácil.

   E continuava eu a dar umas sortidas por Paris, nota só para o metro, compras no mini mercado, grelos e costeletas de porco, cerveja alguma. Depois das oito da noite por o nariz de fora da janela era suicídio. Uma noite, dia alto na minha terra – pensava eu – acabou o tabaco em casa. Preparei-me para sair e o Tonio deu-me as recomendações:

   — Vais ao quiosque no fim da rua e compras dois gaulloise.

   — Mas Tonio, há um bar em frente da casa porque c*ralho vou ao fim da rua com este frio?

   — Faz o que eu te digo, eu é que sei!

   Saí do prédio a dizer mal da vida e de todos os Tonios desta vida e embiquei directo ao bar em frente. Quando abri a porta percebi o que ele queria dizer. Um passo em frente e mergulhei na escuridão, só via olhos pousados em mim e um silencio opressivo.

  Em frente ou fugir. Frio da rua ou o calor do bar?

   — Ei Fifi?

   Voz de Mohammed salvadora que o meu sorriso agradeceu. Segundos depois de eu ter assentado o cú na cadeira já meia dúzia de rostos me espiavam por todos os lados. Olhei todos de frente à espera do que viria a seguir. Latidos de cão, pensei eu, nunca me passou pela cabeça que existissem homens a linguajar daquela maneira.

   Mohammed convidou-me a tomar uma bebida e não pensei duas vezes:

   — Pelfort noir.

   Não demorou a mesa estar cheia de garrafas daquela bela cerveja.

   — Fifi, esta é a tua casa sempre que quiseres, com ou sem dinheiro cerveja e tabaco não te vai faltar.

   Não falei aos meus amigos que me davam guarida o que se tinha passado, apesar deles se interrogarem como eu chegava tão rápido ao quiosque e voltava com o tabaco.

   Nunca souberam que todos os dias ao fim da tarde entrava no bar e ouvia:

   — Eh Fifi, une Pelfort?

   Eram duas ou três, gaulloise e por vezes um cigarro da terra deles, para preparar o jantar como eles diziam; com canções da terra faziam com que eu recordasse o que também deixara para trás.

  

   Um grande abraço para o tunisino Mohammed e seus companheiros do bar escuro do qual nunca soube o nome.

 

Fifi