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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

AS VIAGENS DE FIFI

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

Estação de S. Sebastián - Donostia

 

   S. Sebastian é uma cidade muito bonita e mais bonita se torna se à traça arquitectónica lhe juntarmos os seus habitantes. Só a mudança de linguajar, do espanhol para o basco sempre que entravamos numa taberna ou pequeno bar, as exclamações durante um jogo de cartas ou dómino fascinava-me. As mulheres que por mim passavam eram todas saídas das revistas que a minha prima  punha à disposição das freguesas no salão da Calçada. Belas e distantes, que o companheiro de viagem não se deixava distrair. Sair de S. Sebastian e apanhar a estrada para Irun era o objectivo e passear na cidade não era agradável com toda aquela tropa. Efeitos do voo de Carrero Blanco - pensei na altura.

   Apanhámos a estrada para Irun, uma via rápida e não há boleia p’ra ninguém. Uma placa de paragem de autocarro, suspirei; o fato de macaco que o companheiro usava e a pasta de trabalhador disfarçava o que nos ía na cabeça. França, passar fronteira e França. Na viagem de meia dúzia de milímetros resolvi por as contas em dia, as dezoito notas do Pantera não iam durar muito e só tinha o companheiro de viagem, – desde Chaves - rapaz do Porto, conhecedor da noite de Orense onde pontificava no bar La Toja uma sua irmã, bem mamalhuda por sinal, mas pouco dado a pensar e fazer contas.

   Em Irun fomos direitos à fronteira dar uma vista de olhos na via férrea. Asneira, apanhamos logo com um soldado, alto… papeles… sei lá! Falei em quatro ou cinco línguas de enfiada, as que sabia e as dos filmes, o soldado correu connosco.

   Uns copos na zona iluminada da cidade, olhos arregalados p’rás chicas e senhoras e madames e sei lá que mais e toca a andar p’rá cama. Fiquei a remoer no rio toda a noite. De manhã, depois de me abastecer de roupa de mulher gorda que havia no quarto da pensão onde passámos a noite, assumi a passagem para o outro lado.

   Seguimos pela estrada que vai dar a Bilbao onde eu tinha a certeza que a fronteira deixava o rio e passava a terra firme. Caminhar e boleia, vamos em frente. Uns quartos de hora passados um camião pára. Uma corrida e quando abri a boca o filho da p*ta arrancou.

   — Foda-se, foda-se, foda-se cabrão de merda.

   Um apito soou, caguei-me para ele!

   Outra apitadela e um braço a acenar do outro lado da estrada.

   Um guardia civil em frente de uma guarita, sobre o rio, que eu não tinha visto. Um mal nunca vem só, que se f*da que eu não vou p’ra trás. Braços no ar, quando apalpou as minhas costas recuou e senti uma pancada na cabeça. Sacou-me a faca de mato que trazia no cinto e ladrou, ladrou, o tripeiro abriu a pasta, garrafas de porto direitinhas, a pistola deixou a minha cabeça em paz e eu suspirei. Contentou-se com a melhor garrafa do lote, a conselho do proprietário, ainda deu uma mirada nas carteiras mas apesar de serem uns miles de pelas apontou a estrada e mandou:

   — Só paras em Bilbao.

   A fronteira passava a raia seca e começamos logo a subir. Tanto mato, giestas gigantes, tojo, era igual a Castro só que maior. A meio da tarde, sem comer, ao ouvir as pás de um helicóptero vai em frente seja tojo ou não, um repouso. Sem água, só uma opção. Em frente, em frente, barulho do pássaro de guerra, esconde, avança, em frente, o sol é mais fraco, a sede um tormento, um pé escorrega e deslizo. Passamos a serra, estamos a descer, um regato e estamos em França. Bebemos como rezes, espojamo-nos na erva por minutos. A noite descia, era hora de andar. Descobri uma estrada estreita, terra batida, pensei em contrabando, mas logo alargou e ao fundo via-se um clarão. Luzes, muitas luzes. Até o frio passou quando ouvimos lá longe um puuuu de comboio.

   Irun ou Handaia?

   Espanha ou França?

   Andar, andar mais, o clarão em frente é a estrela de Belém.

   A placa que estava na minha frente deixou-me um sorriso nos lábios. O primeiro objectivo estava alcançado. Estava em França havia que chegar a Handaia , tratar de comboio, dinheiro, comer e dormir. O sol ainda não tinha nascido e chegamos à terra prometida. Uma porta de prédio aberta, um armário vazio no vão de escada. Apertados tentamos dormir. Bem cedo a portinhola abriu-se e uma cara rugosa espreitou para dentro. Não lhe dei tempo para abrir a boca:

   — Pardon madame, on a arrivé dans le dernier train de Espagne, on va acheté des choses.

   — Un moment, je vais appeler pour la gendarmerie.

   Quando a velha virou costas e entrou em casa, desaparecemos. Sempre a descer encontramos uma cerca de arame. Caminho de ferro. Mais à frente a estação.

   Primeiro saber o preço do bilhete, depois, onde cambiar dinheiro. Com o dinheiro dos dois na mão tratei logo de separar o necessário para a viagem. Comprei passagem para os dois e arranjei maneira de ficar com uma nota extra. De Handaia a Paris a viagem foi um sonho e perto do destino resolvi por os pés no chão.

   — Estamos a chegar a Paris, agora que é que vais fazer?

   — Vou apanhar um carro, o meu destino é oitenta milímetros p’rá frente.

   Sorrindo, apresenta-se um fulano a propor transporte para onde for necessário. Saquei o papel que o compagnon de route tinha na mão e atirei ao moinante transportador.

   — C’est combien pour ….

   — Trois cent

   — Je veux aller pour la Villete

   — Plus vingt cinc

   — D’accord!

   Ele quer trezentos?

   — Percebeste, mais vinte e cinco p’ra me deixar a mim.

   Aconcheguei o corpo dorido no assento do carro. Tanto carro e tanta gente, cheguei, apalpei as notas no bolso e descobri que faltavam cinco francos. Que se f*da. Quando paramos em frente do 36 Rue Lécuyer puxei da nota e atirei:

   — Faltam 5 francos, não tenho mais nota.

   O homem saiu do carro e diz-me:

   — Há sempre alguém conhecido. Como se chama a pessoa que vem encontrar?

   — Tonio, Tonio Barbeiro.

   O homem falou logo com dois ou três, eu saí do carro e entrei no prédio, aparece o Tonio de marmita na mão acabado de chegar do trabalho.

   — Tonio, preciso de cinco francos p’ra pagar ao gajo do carro.

   — Toma lá e vamos fazer o jantar.

 

Pantera, foi com as tuas 18 notas de cem que cheguei a Paris.

 

 

Fifi