MAIS UM DOMINGO V E VI
5
Fiquei só, a observar. A juventude gostava mesmo da Discoteca. Sentia-se libre. Na Barbosa, onde havia um grande salão de baile que tentara fazer-lhe concorrência, a maioria das raparigas, como no tempo dos nossos pais, eram acompanhadas pelas mães. Ali, talvez pela má fama e para o grande prazer das miúdas, nunca se viu uma mãe acompanhar a filha.
Diante de mim, passaram dois dos mais castiços que por ali andavam : o Sem Garganta e o Tarédia. Já não eram canalha. Operavam juntos. Primeiro ia um deles dançar com uma rapariga. E mesmo que esta apenas lhe encostasse a ponta das mamas, quando acabava de dançar, sussurrava ao outro : "Podes ir, dá um rebolo do caraças." Era sistemático. E o outro lá ia dançar com ela. Dançavam de olhos fechados, felizes com pouco. Sentiam-se no paraíso. Eram homens para molhar as cuecas. Ri-me com gosto.
Dei uma golada na cerveja. "Voulez-vous coucher avec moi, ce soir ?" O ritmo era bom. Muitos anos antes de chegar aos "civilizados", já ali se ouvia isto. Os "mouros" esqueceram-se que Portugal começara pelo norte.Meti um cigarro nos lábios e peguei-lhe fogo. Mais fumo menos fumo... Ia guardar o isqueiro quando ouvi:
— É, pá, mostra lá o isqueiro, caraças...
Pouca sorte, o Cisso do Peso. Quando lhe pegava, também era das boas. Carburava a tinto, mas unicamente do bom. Conhecia a qualidade em todas as tascas. Andava frequentemente encharcado. Mostrei-lhe o isqueiro.
— É, pá, é de um destes que eu ando atrás há muito tempo. É um Dupont, caralho, e banho de ouro e tudo, pá. Compro-to, meu !
Respondi que não estava à venda. Insistiu.
— Ó pá, dou-te trezentos paus, já.
Saca o dinheiro e põe as três notas por cima do balcão.
— Ó Cisso, já te disse que não estava à venda !
— Quinhentos, pá, dou-te quinhentos paus – voltou a insistir.
— Nem que me desses um conto – disse-lhe, já a perder paciência e com a intenção de pôr ponto final ao negócio.
Ficou silencioso alguns segundos, propondo-me em seguida :
— Ó pá, se soubesses como gostaria de ter um isqueiro destes... O problema é que já não fabricam este modelo. Olha, não posso fazer melhor : levo-te à minha adega. Comes e bebes enquanto quiseres. Tens chouriço e presunto. Que dizes ? É bem pago, meu !
Fiquei de boca aberta. A proposta era aliciante e lancinante ao mesmo tempo. Os apreciadores davam tudo para ir à adega dele, (da mãe).
6
Constava que presunto, chouriços e tinto era tudo de primeira. Os tipos que lá tinham ido eram muito poucos. Diziam que era a melhor adega do Peso e uma das melhores do concelho. Fiquei com pena dele e, sobretudo, de mim, por ter que deixar passar a oportunidade de ir à adega, mas voltei a negar. O isqueiro fora-me oferecido por alguém que estimava muito. A desolação era enorme. Para me abrir a porta da adega tinha que o ardor pelo isqueiro ser muito grande. Conformou-se, mas aproveitou para me cravaruma ginja com a qual regou o denso bigode preto. Na Discoteca não serviam vinho (era proíbido), nem às escondidas, o que não era do agrado do Cisso.
Ali ficamos os dois a fazer mais fumo e a observar o baile. Os bailarinos andavam agarrados, ao ritmo lento do Camilo Cesto e do seu "Alma, Coraçon e Vida" que fazia chorar os corações aos apaixonados. Ai, juventude, juventude ! O tempo ia passando. Olhei para o relógio. Já eram quatro e meia. O Cisso perdeu-se no meio da gente. A minha cerveja secara. Preparei-me para evitar as pisadelas e ir dar uma volta lá em cima. Não foi fácil, mas consegui alcançar as escadas sem dano e chegar ao café.
Encostei-me ao balcão e pedi uma cerveja. Dei uma golada e virei-me, cotovelos por cima do balcão, para curtirquem estava na sala, como sempre. Não havia nada de especial a assinalar. O pessoal, animado, discutia. Nos sofás contra o muro, o Pousinha fazia rir à gargalhada as inseparáveis Brasileira e a filha do Pacho mais velha, abancadas diante dele. Estava na dele, estava bem. Quando queria também era engraçado. Diante, tinha uma Cristal. Não dava para beber aguardente na frente da Brasileira. Era cheia de tiques e procurava sapato à medida e, de preferência, de "boa marca". Pequenita e demasiado mamuda para a altura que tinha, quando andava, requichava o cú. "Se lhe metessem uma pena no cú, parecia uma galinha", dizia o Zé Grande. Não sejámos má língua !
Na mesa do lado estava o Camilo com dois conterrâneos. Devia estar numa repetição da da tropa. Seria mesmo verdade o que me contara ? São homens para tudo.
Apareceu o Cancas que se encostou ao meu lado. Parecia abatido.
— Então, Cancas, que tal o artigo ?– perguntei para me meter com ele.
Respondeu-me depois de ter pedido uma cerveja.
— A coisa parece que está vista, meu. Já esteve melhor - queixou-se.
— Não há mesmo nada?
Fez uma careta e disse-me desgostado :
— Ó pá, fui dançar com uma miúda de Pousa Foles, por acaso bem boa. O cabelo da gaja, meu, empestava ao sulfato. Corte ! Via-me mal para respirar. É para o que está, meu, foge !
No salão, o Barry White implorava : "Let the music play". No Largo da Calçada, outras motorizadas e outros carros continuavam a andar às voltas.
Os risos da Brasileira e da Pacha faziam virar as cabeças e retinham os olhares. O Cancas, que só agora tinha reparado na presença do Pousinha, riu-se e, pondo a mão aberta ao lado da boca, segredou-me :
— O Pousinha já está a ficar fodido. Os olhinhos parece que deitam "chispas". Há potada à vista, meu. Não sei se chega à noite.
— Não sejas pessimista, o dia correu-lhe bem, está na dele. E inspirado, pelo que se vê – respondi.
(continua)