ENCONTRO COM INÊS IX
— Queres que te fale do que é segredo? Nem penses. Se o Castelo foi feito pelas nossas mãos, quem é que o deve conhecer? Mas deixa lá isso. Saímos. Saímos mas não todos. Houve quem ficasse. Uns por medo, outros a pensar que a segurança estava lá dentro, outros ainda porque vêem sempre lucro no negócio da guerra e, de qualquer maneira, já conheciam bem os senhores de dentro. E, mesmo durante o cerco, havia sempre lugar para a diversão. Levaram-nos o melhor. Porquê? Para os soldados? Eram grandes as festas! Tão grandes que o barulho dos “trons” não contava. Perdiam-se entre os risos, as cantigas e as danças e os gozos dos mandões. Mas os soldados estavam lá. Sempre de sentinela e quantas vezes alvo, na prática do tiro da besta, em que a mouche era o coração. Estômago apertado, o pão de milho era pouco e o vinho cada vez mais aguado. Fome no soldado, fartura no capitão.
Havia gente de garra na Casa Grande e no Castelo. Gente que defendia que “depois do Castelo só a Corte”. Cabanas? Nunca mais. E quem atira a primeira pedra?
O silêncio envolvia-me, mas não o sentia. Eram risos, trons de risos, trons, barulho de risos ou de trons, o silêncio dela … o silêncio e eu.
Pensei que o cabelo dela ia dançar, mas não. Encostou a cabeça no meu ombro e o meu sorriso dizia:
— Inês!
Uma lágrima no canto do olho e um esgar de raiva a fazer de sorriso:
— Não foi melhor não, mas era livre! A fome também apertava e os melhores nacos de carne não eram para os soldados. A tenda do Rei pouco melhor era que uma barraca de feira. A moral era igual a um riacho em tempo de seca. Maldita terra, maldita guerra!
Durante dias percorri o acampamento a pedinchar, a matutar … Quantas vezes lembrei a Casa Grande? O pão acabado de sair do forno; os capões e as cabras que foram de um vizinho e agora são a festa dos estômagos, nunca cheios e sempre à espera de mais, que a guerra está à porta e o inimigo nos cerca.
Uma manhã acerquei-me das muralhas e fiquei sem fala. Ela, a amiga! A que escolheu as festas e os gozos! A passear-se com os senhores! A gozar naquele sorriso que dizia:
— Nós ganhámos.
Não resisti e gritei. Gritei até os pulmões doerem:
—Desce, se és mulher. Desce que te rebento as fuças e vais provar na cara um punho português.
O alarido foi tal que todo o acampamento saiu para ver o que se passava. El-rei chegou, quando viu que não passava de uma rixa entre duas mulheres, riu e deu meia volta para tornar à tenda.
Das muralhas, o gozo, o riso e a algazarra não eram menores. Atirei novamente:
— Desce que te desfaço, traidora dum raio.
Alguém me segurou o braço que logo sacudi, mas quando vi a cara de el-rei, aquietei-me.
— Aguarda. Se é isso que queres, é isso que terás. Agora vai para o acampamento que logo falamos. E não te esqueças que Melgaço é tua e de el-rei de Portugal.
Falar é bonito mas para ignorantes como eu, baixar a cabeça e calar porque el-rei manda …
— Cala-te. Nada de filosofia nem democracia. Rei é rei e os tempos não são os de agora.
(continua)