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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

VISITA A PARADA XI

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Preparei-me para ir ao Cuto Santo. A predilecção que tinham pela Igreja certamente que fôra predisposta pela santidade do local onde viviam. Dei uma lavadela à cara e vesti a roupa limpa. Não desci o caminho da fonte, não queria voltar a encontrar o Tio Justino. Chegara-me. Se tivesse continuado a renegar a realidade, de certeza que não me tinha feito tão mal.

   Fui por uma estreita passagem que havia entre as casas dos de Clau e dos da Fonte. Acabava na "rua" principal, um pouco antes do ofício do Rocha. Desci a "rua" até ao fim, junto da capela. A casa do meu tio era a poucos metros dali, quase em frente. Tive sorte, não estava. Fôra trabalhar para a Carrasqueira. Falei dez minutos com a minha tia, que me deu um saquinho de doces secos, e dei meia volta. Ao passar diante da loja do Tio Trabessa, fui falar-lhe. Não era como a Tia Zaura, a porta estava sempre aberta e ele, dentro sentado. Dava-me dois ou três rebuçados quando, mais pequeno, lá ia. Mais acima, foi a vez do Tio Rocha. Ficavam contentes. Via-se-lhes na cara. Uma das grandes qualidades dos do Monte é que consideravam a canalha como adultos. Não havia fronteiras na idade.

   O meu pai andava a barrer o pátio com a vassoura de giestas. Contei-lhe. Olhou-me e riu-se, o malandro, como se me dissesse: "Que sorte tivestes"! Era verdade. Não tivera que suportar o irmão, armado em erudito e que considerava os outros parolos. Quanto às suas "c´roas", que lhas desse ao padre domingo, na missa.

   Os de Clau apareceram, vinham com duas "lourinhas". Eram discretos. Nem as vacas tinham chocalhos. Eles e o meu pai apenas se falavam. Tinha-se dito que entre o Grande e a mulher...

   Preparei o saco. Sentia-me sozinho em Parada. Áquela hora, pensei, se estivesse na Vila, só tinha o embaraço da escolha. Bastava-me ir dar uma volta ao Terreiro para encontrar alguém da minha idade com quem "discutir".

   Nascera ali, mas o meio onde vivia fizera o seu trabalho. Gostava daquela gente, daquela terra, dos cheiros, das paisagens... mas não fora criado ali. Não vivíamos do mesmo modo nem as necessidades eram as mesmas. As raízes estavam ali, mas as ramificações e a folhagem já tinham chegado à Vila. Mais tarde, reparei que tinham ido muito, mas muito mais longe.

   Amanhã de madrugada ia enfrentar a subida da Minhoteira até Pomares. O meu pai ia comigo até lá, onde eu apanhava a camioneta para a Vila.

   Comemos uns rojões à maneira do Monte com batatas cozidas (sempre) e uma água de unto na qual esfarrapamos um pouco de pão. Sentei-me na pedra. Não sei porquê, mas gostava tanto que era capaz de ali dormir sentado. Sentia-me como num morro. O meu pai veio saborear o Kentucky. E estava este quase consumido quando apareceu o Zê Bilam. Calças à pirata, (pouco lhe desciam dos joelhos) e alças de pano, feitas à mão pela avó. A planta dos pés servia-lhe de sapatos no verão. O meu pai deixou-lhe o lugar, foi fechar as galinhas e foi para o campo com uma "manada" de palha na mão.

   O Zê só me vinha ver, disse-me. Amanhã também se levantava cedo. Ia para Braços, entre a Cela e a Gave, onde iam reparar a ponte sobre o regato. No último inverno, as fortes águas tinham-na levado. Falou-me do irmão que estava na França e por quem esperavam no mês de agosto. Vinha de carro pela primeira vez. O Zê esperava que o levasse à Vila. Estávamos no princípio de julho. Daqui a um mês, os carros dos de Parada e da Gave faziam de Pomares um grande parque de estacionamento. "É trám cada máquina!", dizia o Zê, admirativo. Os olhinhos brilhavam-lhe. Ele também teria uma máquina dessas. Sonhava, tinha fé no futuro. Por enquanto a máquina era a burra. E continuamos a falar. Era quase noite quando se foi. Deitei-me. Tinha a cabeça vazia.

   Só voltei a Parada trinta e cinco anos depois. Não mais vi o Tio Justino. Como professara, muitos estudaram e muitos mais foram para França. O meu pai pode descansar.  Se os do Monte não são os mais finos, pelo menos são os mais ricos: a Vila é deles.

   E a eterna rivalidade entre os da Vila e os do Monte continua. 

 

Dezembro 2007

 

A. El Camborio