VISITA A PARADA X
Já na casa, fizemos lume para aquecer o caldo. Nenhum de nós tinha grande fome. Comêramos bem e tarde. Uma boa tigela de caldo e uma bem mais pequena de tinto chegou-nos. Lavamos as tigelas. O meu pai acendeu o Kentucky e borrifou as brasas com água. Estava bofa. Sentamo-nos fora, o tempo da cigarrada.
A cama e o campo cansaram-me. O Tio Justino, involuntariamente, revoltara-me. E o facto de os meus amigos não estarem, para me poder distrair, aínda mais me revoltava. Devia ter ficado na Vila, pensei. Por uma vez, estava ansioso por encontrar o colchão de areia.
No dia seguinte, pusemo-nos a pé à mesma hora. Não devia ter dado muitas voltas na cama. Estava preocupado porque não ouvira os galos novamente. Havia galos em Parada? Sabia que os do Monte, na casa, nem os galos deixavam cantar mais alto do que eles. Mas daí a não haver galos...
As tarefas habituais feitas, saímos à mesma hora para o campo com a espingarda, a "bota" e mais alguns sacos às costas. A espingarda não se ouviu. Nem galos nem caça, não havia nada!
O Florindo apareceu aínda não eram onze, com o carro de bois. Faltavam-nos duas fileiras. Ao todo, tínhamos enchido quase doze sacos. Um saco por mês, durante um ano, para o meu pai que só comia batatas. Carregaram os sacos no carro e regressamos ao Carrascal. Não encontramos ninguém. A caçadeira continuou muda. Ninguém saía. Nem os coelhos. Estava cada vez mais desgostado. Onde estava a gente que ia, de enxada às costas, a cantar, para os campos trabalhar? Onde estavam as vacas que, com grande chocalhada, iam e vinham sozinhas dos pastos? E os rebanhos de ovelhas, jardineiras do monte?
As batatas metidas na côrte, o meu pai e o Florindo saborearam uma tigela de tinto. O Florindo gostava da boa pinga. Nada de água. "Auga? Ê pr´a labar ôs pês é nom ê sempre", gracejava, seguindo-se uma grande gargalhada.
Fomos comer à casa dele, tinha-nos convidado no dia antes. O anho que nos preparara a mulher não dissipava o meu mal-estar. Já não estava em Parada. Acabei de comer e pretextando cansaço, fui para a casa. Deitei-me na cama e dormi um pouco. Aínda estava deitado, mas acordado, quando o meu pai apareceu. Levantei-me. Tinha decidido e disse-lho.
— Amanhã, vou embora, pai.
Com o caneco na mão, ia deitar água às galinhas, parou, pousou-o e sentou-se numa das caixas. Olhou para mim e, como se não tivesse ouvido, perguntou:
— Manhám?
Acenei com a cabeça. Não era preciso justificar-me, sabia as razões.
— Cômo queiras, mêu home – e acrescentou – Antes, debias ir bêr ô têu tio, ô Cuto Santo. Já dêbe saber que biêstes.
Prometi ir mais tarde. Tinha que fazê-lo, embora não tivesse qualquer afecto por ele. Era uma questão de respeito. E sempre me dava umas "c´roas".
Era todo o contrário do meu pai. Pequeno e redondinho, falava como os da Vila. Não admitia intimidade a ninguém. Todos o tratavam por senhor Manuel. Regedor há anos, santeiro, dera dois padres à Igreja e tinha um neto que ia pelo mesmo caminho. Sem contar os dois primos, os Justininhos. Chegava a ir a Melgaço, todo aperaltado, de chapéu de abas largas, botas de cavaleiro feitas pelo Rocha, montado no belo cavalo que fazia o seu orgulho. Deixava-o preso numa das grandes cerejeiras bravas, junto da casa da Fátima da Loja Nova. A mulher, quando a levava à Vila, ia coberta de ouro. "Estim´á comó ´ma toura", diziam em Parada.
(continua)