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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

VISITA A PARADA IX

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Antigamente, passavam três, quatro ou mais anos sem vir à Terra. Aínda não vinham todos os anos gastar o que tinham poupado. Iam e viviam sozinhos. A França era muito mais longe. O Tio Casimiro aínda era destes. A viagem pouco menos de dois dias durava. O "comboio da França" chegava à Frieira, na Galiza, a estação mais próxima, ao fim da tarde. Chegados a Melgaço, com barba de dois dias, estavam moidos. Alguns ficavam ali. Cortavam a barba no Pacho que, de passagem, os aliviava dumas canetas que traziam no bolsinho exterior do casaco para mostrar que sabiam escrever, assim como de outras "lembranças". Depois de uma ligeira lavadela e uma boa refeição, descansavam numa pensão até ao outro dia. De manhã, frescos, lá iam para o Monte. As más linguas diziam que não queriam chegar à noite à casa porque tinham medo de encontrar alguém na cama com a mulher.

   O Zê só vinha à noitinha. Voltei para a casa. O meu pai continuava na cama. Passava das quatro, "pela velha", claro. Sentei-me novamente na pedra. E o Cagarroso por onde andaria? Não perguntara por ele ao meu pai. Filho mais novo dos da Fonte, era mais velho do que eu quase dois anos. Quando cachopo, andara, como todos, com as calças rachadas no cu e com a gaita de fora. Só que andou quase até aos cinco anos. O nome ficou-lhe. Quando fosse maior, era para o Canadá que queria ir. O irmão mais velho que lá estava contava-lhe maravilhas daquela Terra.

   O sol começara timidamente a descer. Preparei uma tigela de água fresca com açúcar e bebi. Ouvia o "tlim tlim" dos chocalhos das vacas que vinha de longe. O Carrascal parecia estar longe de Parada. Sentia-me só. Uma sensação de mal- estar começou a crescer em mim.

   O meu pai acabou por se levantar e refrescou a cara com água. Veio à porta deita-la fora e viu-me no mesmo sítio que quando se deitara.

   — Ô Bilam nom está é ô Cagarroso támpouco... – disse.

   Riu-se, compassivo. Não tinha outros amigos da minha idade, em Parada. Sabia que, se um deles estivesse, não me tinha encontrado ali sentado.

   — Bou ir atê ô ´fício do Rocha. Quêres bir?

   O Rocha era o sapateiro-soqueiro. Tinha o ofício, como diziam, a meio da "rua" principal. Os homens, nos momentos livres, encontravam-se lá e, entre duas cigarradas, discutiam de tudo e de nada.

   Tentava distrair-me, mas não tinha vontade de ir, estava cansado. Além disso, não ia porque, cada vez que encontrava alguém que dizia duas de francês, queria  que o falasse. Detestava fazê-lo.

   Fiquei só, a olhar para a curva que o sol ia desenhando, estendendo-se de cores. A hora era propícia para não pensar e deixar-se levar pela morosidade que o calor provocava.

   Quando voltou do ofício do Rocha, aínda não eram seis. Não ficara mais por eu não ter ido. Eu apenas me levantara para beber. Passaram dois homens (enfim!) que vinham dos lados da casa da Bilam Belha e foram pelo caminho da fonte abaixo. Fardados como estavam, deviam vir da Vila.

   Preparou uma tigela de água com açúcar que bebeu. Fechou a cancela (além da porta, havia uma cancela para evitar que as galinhas entrassem na casa), fincou-se nela com os cotovelos e olhando para o "eido", disse-me:

   — Ôs da Fonte estam êm Ponte de Lima. Ô irmam bêndeu ô qu´aqui tinha é comprou pr´álá. Ê uma quinta mi boa. Foram ajudar, é ô Cagarroso tamém.

   Percebeu o meu abatimento. Continuou:

   — Bou ber ô Florindo pr´a que me bá buscar ôs sacos ô campo, manhám. Manhám acabamos.  Acordas-te dêl?

   Claro que me lembrava do Florindo. Era um bonachão a quem nada faltava. Levava vida alegre e folgada. Pequeno e gordinho, tinha o cabelo encaracolado e da cor do trigo. Parecia de outra raça. O Florindo não lhe negava nada. O meu pai levara-lhe o filho único, o Flores, para a França. "Tinha bô emprego é limpo", gabava o Florindo. Trabalhava com uma grua.

   A casa ficava ao fundo de uma longa latada que começava no caminho que ia para o campo. Não era longe. Lá fomos.

 

(continua)