VISITA A PARADA VIII
Mal subi as escadas, cheirou-me logo ao cozido, fazendo a fome declarar-se. Mesmo esta se mantivera discreta. Passava das duas.
— Estubêstes co Tio Justino, nom?- perguntou-me o meu pai, sorrindo.
Era uma interrogação afirmativa.
A caneca de vinho estava em cima da mesa. Livrou o conteúdo do pote no grande prato de barro, guardando, contudo, água e algumas batatas e couves. O caldo estava feito. Cada qual do seu lado da mesa, prato no meio, fomos comendo. Era à hora espanhola. As batatas eram farinhentas, como gostávamos. Não se esquecera de meter com a chouriça de carne uma ceboleira, das que eu mais apreciava. Nada ficou. Era hábito, com o meu pai. A comida era feita em proporção mas nunca faltava. Tanto eu como os meus irmãos, quando presentes, éramos os primeiros a ficar cheios e a parar de comer. O meu pai "lambia" o prato. No Monte, consumo era sinónimo de necessidade e não de desperdício. Quando descascava as batatas com um canivete sempre bem afiadinho, as cascas eram tão finas que quase se via o dia através.
Demos uma arrumadela e sentamo-nos fora, na pedra. O Kentucky fumegava-lhe no canto da boca. Estava tudo calmo. As galinhas continuavam a esgravatar no "eido". O calor era bastante. Sentia-me contente, pouco a pouco. O cozido ajudara. Vira o Tio Justino, depois de tantos anos! Era o dono do Carrascal.
O meu pai foi estender-se na cama, descansar um pouco. Trabalháramos bem e a caminhada fora boa. Fiquei sentado à espera de ver o Zê Bilam passar na burra. Neto da Tia Bilam Belha, trabalhava com a burra às cargas principalmente entre Parada e Pomares. Também ia aos moinhos quando havia muito para moer ou a qualquer outro lado. Tinha a minha idade, éramos amigos. Conhecia-o desde que, pequenino, vinha a Parada, mas só há um ano falara com ele. Gostava que lhe falasse da Vila. Nunca baixara de Pomares. Não se via mesmo ninguém. Nem os de Clau, nem os da Fonte. Fui à côrte deitar água fresca na pia das galinhas e buscar uma "manada" de palha para, no campo do lado "baixar as calças", junto do canastro.
Do Zê Bilam não havia sinal. Resolvi ir à casa dele. A Tia Bilam Belha lá estava sentada, no mesmo sítio, com um monte de feijões secos para descascar. Tinha trabalho. A roupa preta e velha, que da cabeça aos pés a vestia, poucos menos anos teria do que ela. Tinha-se esquecido dos oitenta, havia alguns invernos. No Monte, as pessoas morriam cedo e de doença, a maioria, ou tarde e de velhice. A Tia Bilam Belha fazia parte das segundas. Pensei no que o meu pai contava do nascimento das minhas irmãs gémeas. "A Esp´rança saíu de madrugada pr´ôs moinhos c´uma carga à cabeça - contava - é cando m´apraceu à casa, binha côm duas raparigas debaixo dos braços". Ria-se. Era de rir, mas de admiração. A gente era rija. A força e a placidez que tiravam das dificuldades físicas, pecuniárias e de conforto, faziam-os assim.
— Ô Zê nom está, Dabide. Foi pr´ás Cortêlhas cargar pr´ô Casimiro. Bêu da França é and´á fazer uma boa casa. Passou muitos anos alá.
(continua)