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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

VISITA A PARADA VII

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   — Ês ô Dabide, ês – sussurrou-me ao ouvido, como para dissipar as dúvidas.

   Não se engana perdigueiro. Agarrei-lhe o cajado e sentamo-nos no murinho. As lágrimas tinham-lhe vindo aos olhos. Já havia bastante que só lhe serviam para chorar. Não sabia que dizer. As dores grandes são mudas. Percebendo o meu embaraço, foi ele que falou.

   — Entom, que me contas? Hai muito que nom bou à Bila, sabes?

  Calou-se uns instantes, brincando com o cajado, um rudimentar pau, mal torcido. Mexeu na boina, que tinha buracos, e voltou a pô-la como estava, antes de continuar a falar.

   — Sei qu´estubêstes na França, côa tua mai é ôs teus irmans... Aquilo ê terra abênçoada. Hai muito dinheiro, alá. Aqui, nom hai nada, bém ô sabes.

   Fez mais uma pausa. Saboreava o momento. Não fazia alusão nenhuma ao passado. Os olhos tinham-lho prendido no escuro interior e a revolta não lho deixava saír. Tinha-o perturbado. Falava de mim para não falar dele. Eu tinha a boca sêca, incapaz de falar.

   — Tu bás ser doutor, nom? – riu-se, não tinha dúvidas – Tês qu´estudar muito, si, mas bás ser doutor. Sinom, tamém tês qu´ir pr´á França, mêu home. Aqui (em Parada), ô trabalho nom se lhe bê probeito.

   Fazia-lhe bem falar, via-se. Também falava por ele, para ele, intimamente. Seria doutor. Porque não? Convencer-se é meio caminho andado.

   — Ê assi, ê, mêu home.

   Silêncio. O tempo parecia ter parado. Devia procurar que dizer. Nenhum dos dois estava à vontade. Os segundos eram horas.

   A Tia Zaura, que estava em cima, na casa, ouviu-o falar e saíu à janela. A loja estava sempre fechada, havia que chamar.

   — Eu bém bia qu´andaba frango alheio na eira! – disse, contente, ao ver-me.

   Via-a com frequência na pensão às sextas. Ia buscar o que lhe fazia falta para a loja e para ela. Sem o saber, a Tia Zaura fizera-nos voltar à realidade.

   — Olá, Tia Zaura – saudei.

   — Ê ô Dabide, bêu a Parada – apressou-se a anunciar o Tio Justino, radioso como o miudo a quem trouxeram uma rosca da festa.

   — Entom  agôra bás ficar aqui – brincou – Quêres algo da loja ?

   Fez bem lembrar-mo, pois tinha-me esquecido que viera buscar pão. Veio à loja e deu-me a peça de pão. Dada, porque era para mim. Sabia que o meu pai comia brôa.

   Antes de sair da loja diante dela, enchi os pulmões de ar, daquele cheiro que tanto gostava. Era sempre o mesmo. Queria imprimi-lo com mais ênfase, o mais profundamente possível.

   Agarrei na mão do homenzinho e, apertando-a, disse-lhe:

   — Até outra vez, Tio Justino.

   Juntou a outra mão à minha e murmurou-me:

   — Nom penses êm mim, mêu hominho, qu´eu estou belho é caduco. Bai na paz de Deus, bai.

   Não precisara de ver para perceber a minha pena. A percepção passa-se de olhos. As lágrimas caíram-me, era o momento. Fui embora, antes que desse por ela.

   Voltei para a casa. O Tio Justino tirara-me o cansaço. Tinha-se-lhe substituido. Não sabia se voltaria a vê-lo.

   Tinha passado do tanque quando me lembrei do caneco que ficara à espera que o enchesse e o levasse para a casa.

 

(continua)