VISITA A PARADA VI
Lembro-me de, no colo dele, ficar em admiração diante do pingo do nariz que fazia yóyó. E, quando às vezes me punha a choramingar, fazia-me cavalgar no lombo do porco que criávamos ao lado da cozinha. Lembro-me da tigela de sopas de vinho que preparava para merendarmos quando já eu "botava mão a tudo".
Os pais tinham morrido com a peste, contara-me a minha mãe. Com o recuo, o que naquela altura os do Monte chamaram peste, creio que era a gripe espanhola. Sobreviveram os dois filhos, o Tio Justino e o irmão Nêl (Manuel), primeiro e único marido legal da minha mãe que, depois de lhe deixar semente no ventre, foi para França e não mais voltou. Dele, herdei o apelido.
O Tio Justino ali ficou, vivendo todo o ano com o que ganhava em pouco mais de três meses de trabalho. Não tinha nada. Nem casa; vivia num palheiro emprestado. Os meus pais convenceram-no e levaram-no para a Vila. Descascava batatas, ia buscar umas grades de refrigerantes ao Castro, rachava lenha e até ia à serração do Cota buscar serrim para o solo da tasca quando chovia. E, ao mesmo tempo, ia-se ocupando de mim. Pelo menos, tinha cama e mesa, diziam. Mas às tardes, quando podia, pegava na cana de pesca e ia embeber-se de natureza na solidão harmonizada do rio Minho.
Ia até ao Louridal e, pela margem, descia o rio. Ao chegar à foz do regato, junto ao Monte de Prado, subia-o cortando pelo monte acima antes de chegar à Ponte Pedrinha. Ia ter às Carvalhiças e, depois, à Vila. Ás vezes, quando chegava à casa, a noite ia adiantada e a minha mãe, que tinha medo que caísse à água (não sabia nadar) ou mesmo nas pedras do regato, acabou por repreendê-lo. Não foi suficiente e, então, proibiu-o de ir para o rio. Um dia, pela última vez, pegou na cana e no pouco que tinha e, a pé, regressou à Terra Mãe.
Evitando fazer barulho e tentando esquadrinhar-lhe o olhar, aproximei-me devagar. Pena perdida! O ouvido preveniu-o imediatamente. Um pequeno movimento da cabeça, quase imperceptível, era sinal que dera pela minha presença e que era verídico o que minha mãe me contara: o Tio Justino ficara cego. Sofria com ele. Apetecia-me chorar, mas não era o momento. Ele que tanto gostava da liberdade, fugira da Vila para recobrá-la, e estava agora dela privado! A única riqueza que tinha, a que até o mais humilde dos homens pode ter, fora-lhe roubada. Estava condenado à escuridão das reminiscências, das lembranças que se tornavam mais valorosas, mais dolorosas.
— Então, Tio Justino, não me conhece?
Que pergunta estúpida!
Virou a cara, como quem quer ver com os ouvidos e, depois de deitar a mão a um cajado que estava encostado ao murinho, levantou-se lentamente. Estava sério. Não era só por eu não ter falado à maneira do Monte. Havia algo mais. Os olhos não manifestavam expressão alguma. Hesitou uns longos segundos. Devagarinho, as feições retractaram-se, salientando-lhe as rugas nos cantos da boca e o rosto principiou a deixar aparecer um sorriso. Foi, então, que, com a entoação e a calma que caracterizam o falar dos do Monte, me disse, peremptório:
— Êl tu ês ô Dabide...
Sem ver, vira-me. Fez-se-me um nó na garganta. Não respondi, não era adequado. Pus-lhe as mãos por cima dos ombros. Deixou caír o cajado, deitou-me as mãos à nuca e abraçamo-nos longamente. Era a vez dele voltar dez anos atrás. Estávamos unidos nas lembranças.
(continua)