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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

VISITA A PARADA V

melgaçodomonteàribeira, 06.03.13

 

 

   Eu levava a "bota" e os sacos às costas; o meu pai, a enxada e a caçadeira, pronta a fazer fogo. O caminho para o campo era o mesmo que ia até aos moinhos. Como tínhamos que atravessar monte, a caçadeira era da viagem. Podíamos cruzar-nos com um coelho, umas perdizes ou mesmo um porco bravo.

   À medida que íamos reduzindo a distância que nos separava da meta, a luminosidade da alvorada ia crescendo. Três quartos de hora mais tarde, estávamos no campo. A caçadeira ficara silenciosa todo o percurso.

   Era um campo grande, metade batatas e metade milho com feijões no meio. A necessidade final era respeitada. Adjacente a este, outro exactamente igual, de centeio plantado. Pertencia ao meu tio. Antes das partilhas, os dois faziam um. Pusemos a "bota" à sombra e deitamos mão à obra.

   O meu pai arrancava e eu ia limpando as batatas,  tirando-lhes a terra que, por ventura, se lhes agarrava. Em seguida, metia-as nos sacos que, pouco a pouco, iam enchendo. O sol, quanto mais ascendia, mais implacável se tornava. Ia-mo-lo combatendo com umas "mijadelas" da "bota".

   Assim fomos trabalhando, quase sem falar, até que o meu pai, depois de olhar para o sol, me perguntou: "Êl ê meio dia, nom?" Não precisava de olhar para o meu relógio, havia duas horas que não lhe tirava os olhos de cima. Estava fatigado. Andar abaixado quase seis horas e ter dormido num colchão de areia eram razões bastante sérias. Sem falar nos meus curtos catorze anos, habituados a uma leve caneta.

   Atamos a boca dos sacos que estavam cheios e fomos encostá-los a um dos muros do campo, onde o sol só lhes dava de madrugada. Preparamos um saco com as poucas batatas que o meu pai cortara ao desterrá-las, recuperamos a "bota" e a espingarda e regressamos ao Carrascal. A enxada deixamo-la no campo, ninguém roubava nada. Como à vinda, três quartos de hora mais tarde estávamos na casa. Não tínhamos encontrado alma viva. A caçadeira continuara calada.

   Num pote bastante grande, o meu pai pôs ao lume toucinho e um pedaço de cabeça de porco, que tinham passado a manhã a demolhar. Como havia pouca água e nenhum pão para mim, peguei no caneco e fui, caminho abaixo, à fonte. Áquela hora ninguém estava a lavar. Lá deixei ficar o caneco e dirigi-me para a loja da Tia Zaura. Nos fundos da casa, situada quase na esquina da junção do caminho da fonte com a "rua" principal, a pequena mercearia tinha todos os produtos básicos para se poder cozinhar. O pão que vendia era do que fazia o Alípio de Pomares. O odor, comum a todas as mercearias daquela época, mescla de petróleo, bacalhau, cevada, azeite, sabão... aínda hoje o trago comigo.

   Foi quando cheguei à esquina que o vi em frente da loja, sentado no murinho, à sombra. Boina na cabeça, brincava com uma palhinha ao mesmo tempo que garganteava uma música que só ele devia conhecer. Certamente que era a mesma que trinava quando andara comigo no colo. Sabia que a Tia Zaura "tomara conta" dele, mas não esperava encontrá-lo ali, sentado no muro. Fiquei triste e contente, ao mesmo tempo. Quase dez anos tinham passado e tinha diante de mim o homem que, apesar da imensa diferença de idade, fôra o meu primeiro amigo: o Tio Justino da Rêga! Voltei atrás esses quase dez anos.

 

(continua)