VISITA A PARADA IV
Estivemos sentados uns longos momentos, os dois na mesma posição: os cotovelos fincados por cima das coxas e as mãos juntas. Não falávamos. Nada precisávamos de dizer. Um bem estar indolente, de simbiose com o ambiente, invadiu-me. Não se via ninguém. As lembranças eram mais fortes do que o esquecimento. As galinhas e famílias andavam no largo a esgravatar. Quando um dos vizinhos se ausentava, um dos outros ocupava-se delas. Durante o dia, misturavam-se as das quatro casas, mas quando era hora de recolher, não se enganavam de capoeira. Chegava-nos o chiar das rodas de um carro de bois ao longe. O tempo foi passando.
O meu pai foi acender a lareira e pôr o frango a guisar. Rapidamente, o cheiro a chamusco chegou até mim que continuara sentado na pedra. Adorava o cheiro do fumo, o cheiro do Monte. Não sabia por que se perdia tempo a arejar quando o cheiro a fumo que havia anos impregnava a casa, era preponderante e encobria qualquer outro. Fui à corte buscar uma caneca de vinho. Comemos frango guisado com batatas e uma tigela de caldo de leite que também preparara. Habituado à comida feita no gás, notava quanto mais saborosa era feita na lareira.
Com uma brasa meteu lume ao incontornável Kentucky (tinha vício de boca) e sentamo-nos de novo na pedra, silenciosos. A pedra era a nossa capela. Era sentados nela que meditávamos. Os do Monte não falavam muito. Diziam: "Quando não sabes que dizer, olha". Ou: "Vale mais ser mudo do que cego". Assim fazíamos. O fim do dia ia-se aproximando e o sol, exausto, despedindo. Ia repousar-se até amanhã. Fechamos as galinhas, fomos "berter augas" junto do canastro e deitamo-nos. A viagem fora longa.
Quando me acordou, aínda era, practicamente, noite. Os galos não deviam ter cantado. Não os ouvira. E não era o que faltava. Eram quatro e um quarto, no meu relógio. No Monte, o relógio era de relativa utilidade. O indispensável era o sol. O meu pai que tinha dois, um de bolso e um de pulso, só os tirava da arca à noite para lhes dar corda ou, então, quando saía de passeio. Mais por ostentação do que por necessidade.
Não tinha vontade de me levantar. Era demasiado cedo para mim. O colchão de areia graças ao qual tinha as costas direitas como uma tábua, dizia o meu pai, também não ajudara nada. Acabei por fazê-lo.
Ele já estava vestido e, diante da lareira sentado, raspava umas "castanhas" d´A Valenciana para um pote com leite. Preparava-me o chocolate. Ele limitava-se à côdea de brôa e golo de aguardente.
Lavei a cara e sentei-me ao lado dele, no banco. Vestira a roupa que trouxera da Vila no saco, a mais velha que encontrara. Comparada à do meu pai, podia ir à festa. As chamas dançavam diante de mim. Sempre gostei do lume. Perdia-me nas chamas, nas cores e nos cheiros. Ás vezes, no mesmo pedaço de lenha, havia cheiros diferentes. Comi as minhas sopas de chocolate, acabando o pão que compráramos ao Feito. Até ao almoço, não comia mais.
O dia também tinha acordado. Ouviam-se cantar, timidamente, alguns chocalhos. Andavam longe. Os galos de certeza que cantaram quando eu aínda dormia. Começava-se a ver. Fui à fonte encher a "bota" de água fresca para levarmos, enquanto o meu pai abria a porta da corte às galinhas e lhes dava de comer. A manhã estava fresca. Enquanto o sol continuasse sentado, o ar não aquecia. Os sacos para meter as batatas já tinham sido devidamente enrolados e atados. Fechamos a porta e deixamos a chave ao lado desta, entre duas pedras.
(continua)