MELGAÇO, HISTÓRIAS DE VIDA I
montes laboreiro
OS PATRIMÓNIOS ALIMENTARES NAS ROTAS DO CONTRABANDO
Lídia Aguiar
Rosalina, pacatamente, fazia renda na biblioteca de Castro Laboreiro. Com 77 anos, para lá se desloca nos dias frios de inverno, já que em sua opinião, aí está mais quentinha. Fez questão de dar o seu testemunho, frisando bem que nunca foi contrabandista, embora, como todos os habitantes desta freguesia, foi muitas vezes às compras a Espanha, tendo por isso sido vítima da violência dos guardas, principalmente dos carabineiros. Sublinhou que quando ia nunca retornava pelo mesmo caminho. Era uma questão de segurança, a guarda podia ter visto ela a passar para Espanha e aguardar o seu regresso. Deste modo, quando encetava a volta a Castro Laboreiro escolhia um caminho alternativo.
Eu nunca fui contrabandista pois tinha muito que fazer nos campos e que tratar do gado. Mas claro que ia a Espanha comprar umas coisitas que nós procurávamos sempre o mais barato. Lembro-me bem do azeite, que era mais óleo, aquilo até era branco, mas era barato. Lá íamos então ao Pereiro, à Luísa, vinha em latas de 5l, se nos apanhavam tiravam-nos as coisitas e os guardas espanhóis ainda nos batiam.
(Rosalina Fernandes – Castro Laboreiro – 20-10-2013)
A D. Rosalina indica-nos que nunca entrou em grandes rotas de contrabando. Praticou o ato para sustento da sua própria família. Era hábito as mulheres juntarem-se em grupo, para mais facilmente se furtarem ao controlo das autoridades das fronteiras.
Isolina da Luz, também abrigada do frio na biblioteca de Castro Laboreiro, entra na conversa:
Eu só trabalhei no do gado e mais tarde no das bananas. Mas sei de quem trabalhasse com contrabando de azeite, farinha, milho, ovos (os ovos iam para Espanha em saias especiais que as mulheres vestiam e disfarçavam na sua roupa). Outro contrabando forte foi o do café, esse ia em mulas até à fronteira e depois os galegos vinham busca-lo. De noite eram umas 4h a andar. E também ia dinheiro, muitas vezes escondido nas tranças do cabelo ou na roda das saias. Também fui muitas vezes às compras a Espanha. Mas aí tinha de vir tudo muito bem escondido e havia que escolher bem os carreiros que usar. Era bem difícil. Os guardas, quer os portugueses quer os espanhóis se nos apanhavam tiravam-nos tudo. Mas valia a pena ir lá comprar, pois era tudo muito mais barato.
(Isolina da Luz – Castro Laboreiro – 20-10-2013)
É com D. Isolina que temos acesso a indicações sobre o contrabando alimentar mais antigo e que mais perdurou na fronteira luso-espanhola: o café. Ela descreve a primeira fase deste tráfico, feito por mulheres, dissimulado em coletes costurados de forma especial, vestidos como de roupa íntima se tratasse. Quanto aos ovos disfarçados na roupa, referia-se Isolina a saias rodadas com sacos disfarçados de pregas, onde enfiavam ovo por ovo, até ao máximo de 5 ovos em altura. No que se refere ao café em maiores quantidades, como se verá posteriormente, o primeiro transporte utilizado foram as mulas.
Dada a dificuldade em breve os próprios galegos se deslocavam através do rio Trancoso e o levavam às costas:
No tempo da guerra ia para Espanha muito amendoim, açúcar e café. O meu pai é que foi do tempo mais antigo. Ele sim, fez contrabando de café para Espanha. Lembro-me que vinha muita gente buscar o café e de muito longe, até de Cortegada. Faziam com o saco de café cru, uma mochila para pôr aos ombros, mas tinham muito medo dos carabineiros e dos guardas portugueses também, que naquela altura os guardas eram muito maus. Também levavam do café já embalado, era o Café Sical. Mas por aqui passava muita coisa, que depois da guerra havia falta de tudo em Espanha. Chegou a vir gente de Vigo, eles tinham de procurar pela vida. Quando a vida em Espanha começou a melhorar, então também passou a vir mercadorias de lá. Lembro-me das uvas passas e do bacalhau no Natal. Aqui toda a gente passou a andar nisto, era a única sobrevivência. Mas valha-me Deus, muitos morreram no rio, que às vezes ia alto e as batelas eram fraquinhas e viravam. A carne também se ia lá buscar. É verdade, que vinha muito gado para cá, mas era velho, que o nosso gado novo, esse ia para lá. Isso sei eu bem, que o meu marido ainda andou a ajudar a passar alguns. Então toda esta zona ia lá comprar a carne, mas era contrabando. Até o pão era um problema. Aqui em Cevide não chegava o padeiro, apesar de isto ser muito povoado, não era como agora que a menina vê. Do outro lado do regato havia uma loja que vendia e nós chamávamos a senhora para nos trazer o pão. Atirávamos uma guita e ela amarrava e mandava assim pendurado por cima do regato. Mas os guardas quando viam a guita logo a atiravam ao regato. Por vezes, já estávamos tão habituadas que ela nos atirava mesmo por cima do regato. Mas então, estávamos condenados a não comer pão? É que ir a Melgaço era muito longe e não havia transportes.
Glória Pires – Cevide – 23-1-2014
Revista Turismo & Desenvolvimento
Nº 33
2020
fronteira de amenjoeira - castro laboreiro