MELGAÇO, HISTÓRIAS DE VIDA II
s. gregório com vista sobre a notária e frieira (galiza)
OS PATRIMÓNIOS ALIMENTARES NAS ROTAS DO CONTRABANDO
Lídia Aguiar
A D. Glória Pires transporta-nos para uma dupla realidade. A que ela própria viveu e a que se lembra de o pai ter praticado como grande contrabandista, na passagem de café para Espanha, ainda no tempo da Segunda Guerra Mundial. Nesta fase, por Cevide, pode-se afirmar que os patrimónios alimentares passados para Espanha foram dos mais variados, dadas as carências que o país vizinho vivia.
O marido de D. Glória contrabandeou gado, pela raia seca, pelo que ela nos informa que o gado que vinha era velho e o que ia era novo e de boa qualidade. A população sabedora que a boa carne ia para Espanha, acabava por a ir lá comprar, mesmo tendo de a contrabandear. Porém, o que mais enfatiza é a questão do pão, pois era obrigada a contrabandear, dado que o local onde habitava não tinha padeiro e do outro lado do rio, facilmente acessível se encontrava uma padaria, mas estava já em território espanhol. D. Glória, ainda no presente não compreende a razão de não poder comprar o pão à sua vizinha, de quem até era amiga, só porque estava do lado de Espanha. Revela-se aqui a identidade de fronteira, onde os territórios muitas vezes se confundem e as barreiras alfandegárias pouco ou nada dizem para quem vive na raia.
Este sentimento é comum nos dois povos da zona de fronteira e na linha cronológica em estudo. E isso o podemos confirmar através de quem praticou este ato até bem próximo da abertura das fronteiras. Atente-se na entrevista seguinte:
No tempo do contrabando, vinha muita gente comprar aqui na nossa loja. Tinham de passar a pé pelo rio (Trancoso). Levavam um pouco de tudo. Já foi nos 70/80 que começaram a ir as bananas, os figos, o bacalhau e o marisco. Nós comprávamos grandes quantidades e depois os portugueses mandavam vir os moços carregarem e levarem para lá, mas isso já não era connosco. Sei que levavam para Cevide, onde tinham a carrinha.
Aqui só passava alimentação. Os portugueses vinham e claro, depois tinham de passar a mercadoria pelo rio. A nossa loja esteve sempre orientada para Portugal. Também cá vinha muita gente no tempo de verão, os hóspedes das termas do Peso, e esses levavam muita coisa, faziam mesmo muitas compras. Eu também ia lá buscar o café. Aqui na loja sempre aceitei escudos e francos, pois tinha um senhor de Melgaço que vinha cá e me fazia o câmbio.
Mas as bananas foi mesmo a grande quantidade. Nós comprávamos e guardávamos no nosso armazém. Depois os portugueses é que as iam buscar para carregar pelo regato. Eram muitos rapazes. De Cevide sei que eles as distribuíam para as cidades como Porto e outras. Quem vinha a Cevide não era o grande patrão, era uma filha e dois empregados de confiança, que organizavam tudo.
Cada caixa pesava à volta de 12 quilos. Dependia da força de cada um. Uns levavam duas, outros três, mas havia quem levasse quatro. Amarravam-nas com umas cordas, pois quanto mais levassem mais ganhavam, pois eram pagos por caixa transportada. Começavam ao escurecer e andavam toda a noite a carregar. Os rapazes andavam todos contentes pois ganhavam algum bom dinheiro.
No tempo da fronteira fechada, isto aqui era muito movimentado. Só fechava a loja no dia 25 de Dezembro e no dia 1 de Janeiro. Para passar o regato o mais normal era porem uma árvore deitada e passarem por cima dela. Agora isto morreu. Os dois povos sempre se relacionaram. A fronteira, nada impediu. Aqui não há raças, não queremos saber se somos espanhóis ou portugueses. Claro que com a fronteira fechada sempre havia algum chato, mas nada nos impediu de nos sentir um só povo.
Isabel Fernandez – Frieira. Galiza – 22-1-2014
Isabel Fernandez, relata-nos um contrabando bem mais recente. Espanhola, moradora na Frieira, Galiza, onde ainda mantém a sua loja aberta, mas com uma frequência muito limitada, quando a compara com o negócio do tempo em que a fronteira estava fechada. Realça as boas relações entre os dois povos, que considera que sempre comunicaram como de uma só comunidade se tratasse.
É ainda significativo o seu conhecimento das rotas até às grandes cidades, nomeando a cidade do Porto, sabendo que era em camiões carregados em Cevide, que geograficamente se situa frente a Frieira, Espanha, do outro lado do rio Trancoso, precisamente onde se situa a sua loja.
A corroborar a sua afirmação, Antero, foi um dos que muita carga fez entre a loja da D. Isabel e os camiões em Cevide:
Eu trabalhei com as bananas, mas para o Mário da Corga. Esse era um grande contrabandista, mas também um grande senhor. Nos tratava muito bem e era muito justo a pagar e sempre nos tratou de uma forma muito humana. Era um grande senhor. Seríamos uns 30 homens a carrejar. A minha mãe com pena, lá ia com um caneco de limonada e ali se sentava a dar um copo de limonada a cada um que passava. Eu carregava no início da noite 6 caixas amarradas com uma corda, dava uns 75 quilos, estava com muita força, depois só trazia 50 quilos, ou seja, 4 caixas. Quantas mais caixas mais recebia.
Os guardas aí já eram mais livres. Pagavam-lhe um tanto por caixa. Então eles vinham no fim contar todas que estavam nos camiões, se ainda houvesse que carregar, também ajudavam, pois, mais caixas no camião, mais ganhos. No fim levavam o saco com o dinheiro, mais uma caixa de bananas ou bacalhau.
Antero Pires – Cevide – 23-1-2014
Com o testemunho de Antero, ficamos a saber que quem possuía os camiões eram contrabandistas de elevado poder financeiro, que contratavam rapazes novos para fazer o serviço duro de passar a fronteira com a mercadoria às costas. Neste caso, Antero, considera o seu patrão um homem justo, pois lhes pagaria um valor correto pelo serviço que praticavam. Constata-se igualmente que a guarda fiscal estava inserida nesta rede de contrabando. Porém, quando os camiões se afastam das zonas de fronteira torna-se difícil controlar as sucessivas brigadas que se encontra ao longo da estrada. Atente-se na seguinte entrevista:
Eu também ia trabalhar para os contrabandistas espanhóis, que esses pagavam bem melhor, apesar do caminho ser mais longo e sempre a subir. Trouxe para cá muita carne e azeite, sempre tudo ali pelo Trancoso.
O último contrabando que me recordo, assim forte, foi o das bananas. Eram toneladas por dia. Também veio muito gado, mas aí na minha opinião, ficamos a perder, pois vieram muitas vacas velhas e foram vitelos novos para lá.
As bananas eram grandes e boas. Nós carregávamos para um senhor de Penso que depois fazia a distribuição para Braga, Porto e outras cidades. Cada viagem correspondia a uma carrinha de 3500 quilos, o que dá muito perto de 300 caixas. Mas iam sempre várias carrinhas por noite. Era muita gente para carregar, o que dava dinheiro, aos contrabandistas, mas também aos cafés e ao comércio local, pois logo se gastava o que se ganhava, porque nós sabíamos que íamos ganhar mais.
Com a guarda só tivemos problemas na altura do tenente Zeca Diabo. De resto havia que por os homens a descansar, não sei se me compreende. As apreensões só se verificam de Ponte da Barca para baixo, de resto estava tudo controlado. Porque está a ver, eram muitas carrinhas que saiam daqui todas as noites e as pessoas começaram a falar e as autoridades a desconfiar, claro, começaram a mandar patrulhas para as estradas. Apesar de ir um carro à frente a abrir caminho, os guardas não saíam ao carro, porque repare, nas subidas as carrinhas tinham de engrenar terceira, quando não segunda, o que fazia imenso barulho e ao longe eles notavam logo. Assim nas subidas apanhavam-nos logo.
Também ouvi falar ao meu pai que o café até fazia parar o comboio espanhol para carregar. Penso que até o chefe da estação e o maquinista do comboio deviam estar metidos; mas disso só ouvi contar, mas sei que foi verdade, embora não seja do meu tempo. Não sei quantos sacos poderia levar cada batela, mas olhe que para carregar um vagon de um comboio, havia que trabalhar muitas horas da noite, imagino eu, pois que como não é do meu tempo nunca vi. Eu só usava as batelas para ir aos bailes a Espanha. Era normal ir a Notaria, a Espanha ao cinema, custava 5 pesetas. A verdade é que nos tempos livres passávamos mais tempo em Espanha do que do lado de cá. Ainda hoje tenho lá bons amigos.
A verdade é que no meu tempo a guarda já era mais conivente e por isso era tudo mais fácil. Por vezes faziam apreensões fictícias, eu próprio cheguei a ir à Alfândega levar 20 quilos de café, para depois passar toneladas para a Notaria. Era assim, agora é tudo livre, mas também não se ganha dinheiro.
José Abreu – Paços – 2014
REVISTA TURISMO & DESENVOLVIMENTO
Nº 33
2020
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