ribeiro de cima, castro laboreiro
O CONTRABANDO NO TEMPO DA GUERRA E DA DITADURA
(…) a atividade do contrabando atinge o clímax num período marcado por dois acontecimentos históricos que influenciaram – direta e indiretamente – a vida económica e social das populações raianas, nomeadamente a Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e a IIª Grande Guerra (1939-1945). O primeiro confronto é contemporâneo da afirmação da ditadura Franquista em Espanha e da consolidação do Estado Novo em Portugal, regimes que, com as suas políticas segregadoras e opressivas, marcaram indelevelmente a vida nas zonas de fronteira.
A Guerra Civil Espanhola acabou, antes de mais, por gerar uma extrema carência de bens e dificuldades de subsistência dos dois lados da raia, provocadas por medidas de contenção impostas, vigiadas e fiscalizadas pelas organizações corporativas estatais. Mas, além disto, a consolidação dos regimes ditatoriais ibéricos, também provocou um reforço das medidas de controlo fronteiriço, contra as quais as populações raianas tiveram que lutar, recorrendo a métodos de resistência ilícitos, como é o caso do contrabando (Táboas, et al., 2009).
O conflito que assolou Espanha acabou por ser encarnado pelas populações raianas como uma oportunidade comercial e isso também se verificou no caso da sociedade melgacense. As guerras, segundo Luís Cunha (2006: 180), tornaram “a fronteira num espaço mais preenchido e, nesse sentido, mais dinâmico”, levaram a um movimento permanente de pessoas e mercadorias, constituindo também um recurso fundamental para a sobrevivência condigna das populações, pois os tempos da guerra foram, sobretudo, tempos de miséria e indigência. Relativamente a esta última consideração, é importante salientar que, neste período, a fronteira também foi encarada como um refúgio para refugiados espanhóis, os quais, pelas vicissitudes políticas, procuravam evadir-se à repressão do regime franquista, procurando abrigo também em Melgaço, mormente na zona montanhosa de Castro Laboreiro.
O impacto da guerra civil está bem presente na memória dos melgacenses. Para uns, este foi um tempo de oportunidades, sobretudo de exportação de bens que faltavam no país vizinho, transformando-se a conjuntura de carências numa ocasião de obtenção de maior capital económico; para outros, foi um tempo assombrado pela miséria e pela rarefação de bens, e também pela conivência das forças de poder protagonizadas pelos seus líderes locais e autoridades policiais. Os dois relatos a seguir transcritos são exemplo claro deste duplo entendimento:
… havia o rescaldo da guerra espanhola, da Guerra Civil de Espanha com o Franco e, ficou o rescaldo da guerra. Depois, havia muitas coisas que falhavam na Espanha e muitas coisas que falhavam a Portugal. Às vezes, falhava o azeite, pronto, havia o contrabando do azeite. Levávamos o azeite nuns odres ainda, chamam-lhe odres, que era peles de animais nuns odres. Sabão, sabão de potassa, café Sical, café sem torrar, café cru. (José, Paços)
…as pessoas tinham pouco dinheiro, tinha acabado a Guerra Civil Espanhola, nós aqui ficámos muito mal, porque tudo o que havia foi para Espanha, porque o Salazar era amigo do Franco e ajudou-o, porque ele teve a Guerra Civil, que começou em trinta e seis, acabou em trinta e nove e a Espanha ficou destruída. Em trinta e nove começou a Segunda Guerra Mundial e, depois, tudo o que havia aqui passou para a Espanha, o contrabando. Pagavam o milho muito caro, o milho vendia-se para a Espanha e aqui passavam muita fome. (Matilde,Paderne)
Como é possível depreender, o contrabando foi, no tempo muito preciso da guerra e da ditadura, uma alternativa viável ao isolamento e à pobreza da população melgacense, uma forma de resistência à marginalidade política, social e económica a que estava votada pelo poder. Além disso, o contrabando era, sobretudo, uma atividade legitimada pela necessidade e é dessa forma que os informantes ainda hoje entendem a sua prática, como uma atividade não danosa, mas necessária.
MARIA SALOMÉ ALVES DIAS
A FRONTEIRA ENQUANTO ESPAÇO DE PARTILHA IDENTITÁRIA, CULTURAL E LINGUÍSTICA: UM ESTUDO INTERPRETATIVO DA ZONA RAIANA DE MELGAÇO
UNIVERSIDADE DO MINHO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
OUTUBRO DE 2017