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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

CONTRABANDO E GUARDA FISCAL

melgaçodomonteàribeira, 14.10.23

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fronteira de s. gregório

 

DO DEVER DA FRADA À CUMPLICIDADE OCULTA –

A POSIÇÃO DAS FORÇAS POLICIAIS PERANTE O CONTRABANDO

 

O Estado impunha medidas para conter as redes de comércio clandestino, cercando as populações da fronteira com mecanismos e recursos humanos e materiais de vigilância, que permitiam fiscalizar o vaivém de mercadorias e pessoas. Apesar de este controlo já ser feito anteriormente, tornara-se mais intenso após as crises económicas e as guerras, exigindo nestes períodos cuidados adicionais, como controlar a passagem de refugiados espanhóis para o território português e evitar a passagem de armamento e, também, o intercâmbio ilegal de mercadorias (Táboas et al., 2009: 66). O Estado apostou, então, na criação e no reforço de infraestruturas de controlo fronteiriço, entre elas postos de vigilância da Guarda Fiscal. Aqui, convém realçar que Melgaço, pela variedade e valor da prática do contrabando tinha, em 1961, o maior contingente de Guarda Fiscal do Vale do Minho, com “2 sargentos, 16 cabos, e 74 soldados distribuídos por 17 postos” (Gonçalves, 2008: 245).

Os postos distribuíam-se por “quase” todas as freguesias: Via, Prado, Paços, Remoães (Mourentão), Paderne (S. Marcos), Alvaredo (S. Martinho), Chaviães (Louridal e Porto Vivo), Castro Laboreiro (Ameijoeira, Portelinha, Castro Laboreiro, Ribeiros de Cima e de Baixo), Cristóval (S. Gregório e Cevide), Lamas de Mouro (Alcobaça) e Fiães.

As forças do poder procederam, também, à reestruturação dos organismos de vigilância e de controlo da autoridade, que incluíam a Guarda Fiscal, a Guarda Nacional Republicana (GNR) e a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), posterior Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE), sendo esta última responsável pela gestão, prevenção e contenção de crimes políticos e, em consequência, pelo agravamento de sanções penais referentes à prática de contrabando e ao auxílio à emigração clandestina.

Relativamente à prática do contrabando, a figura que mais se destaca nas narrativas dos informantes é, sem dúvida, a do Guarda Fiscal, com a qual tiveram uma experiência ou relação mais próxima. Nos seus discursos, como já referi anteriormente, a figura do Guarda Fiscal assume uma posição dual: por um lado, reprimia a prática do contrabando, zelando pelo seu dever profissional; por outro lado, devido ao seu passado antes da inserção nas forças policiais, que muitas vezes passava pelo contrabando e pela sua ligação às comunidades em que prestava serviço, onde muitos dos contrabandistas eram seus vizinhos ou parentes, acabava por conscientemente aceitar e tolerar esta prática clandestina (Amante, 2007; Fonseca &Freire, 2009).

O excerto que a seguir reproduzo foi transmitido por um antigo Guarda Fiscal que, no passado, também havia tido experiência enquanto contrabandista. Nele se reflete de forma muito clara a postura de conivência advinda das forças do poder, justificada pelo informante pela experiência do passado:

Haviam aqueles jovens, os matrimónios, que tinham casado de novo, que levavam dez quilos de Sical, iam nos barquinhos, traziam dez kilos de Sical para cá. Sempre se ganhava cinquenta escudos, cinco escudos cada, aquilo era muito dinheiro, mas claro, tinham uma família assim. Não é que eu entro das oito à meia-noite e não vou apanhar dois rapazes com vinte kilos de Sical? Porque dei-lhe o Auto! E não pararam, claro, era normal, fugiram. Atiraram com o café dentro do barquinho, mas um tinha a corrente e o barco atado num amieiro, era de noite, não abriram a tempo e eu puxei-lhe a corrente e prendi-os.

Chegámos ao Posto: ó senhor Guarda, deixe-nos ir embora, deixe-nos ir embora! (um até já chorava). Eu: pousem aí! Vão-se lá embora, pronto!

Já iam embora e deixavam o café, eles queriam era ir embora, porque o cabo, além de perderem o café, ainda os fazia pagar a multa, que era um a dez vezes o valor da mercadoria!

- Levem o café! – eles até ficaram assim admirados; e eles: ó senhor Guarda levámos para casa ou para onde imos?

- Para onde quiserdes!

Eu a primeira noite não os conhecia, tive pena deles.

Um, tinha dois filhos e tinha a mulher grávida (…) e o outro… tinham a vida deles, coitados! Então, quando vinham e eu estava de serviço, deixava-os passar. (José, Paços)

Outros casos houve em que a conivência partia de uma oportunidade de grupo, ou seja, o Guarda Fiscal, cooperando muitas das vezes com grandes redes profissionais de contrabando, impunha determinadas condições para a sua benevolência, entre elas, parte dos lucros da mercadoria transacionada, enriquecendo “à manjedoura da actividade, sem qualquer ética ou sentido de classe” (Domingues&Rodrigues, 2009: 231). Como reforçou o Guarda Fiscal que anteriormente referi, “os contrabandos, ao fim, já acabavam por não ser contrabando, porque o tenente, o comando da secção sabia tudo, deixavam e levavam!” (José, Paços). Além do referido, o posto da Guarda Fiscal e alfândega também eram, muitas das vezes, o último “refúgio” dos bens apreendidos, que depois acabavam ou por ser leiloados, ou repartidos pelos próprios soldados ou até destruídos, como um trabalhador da alfândega me acabou por confidenciar:

Jesus, nem queira saber! Eu atropelava nas apreensões da alfândega, que a Guarda Fiscal prendia, quando prendia; sabe que os maiores corruptos eram aqueles gajos que empregavam a farda, não é? Quantas vezes nós nos atiramos aí! Aqui o contrabando era uma razia. Eu queimei muita carninha vinda de Espanha. Aqui, um dia fui queimar carne a Monção, no jipe da Guarda Fiscal; não era Guarda Fiscal, era da alfândega, mas (…) no meio daqueles penedos, em Monção, só se via carne a arder. Deu-me tanta pena! Vinham aquelas pessoas com criancinhas cheias de fome! “Oh, deixe-me, dê-me (…) kilos de carne!”; “Oh, minha senhora, deixe-me ir embora e depois vocês arranjam-se!”, mas queimei muita carninha, pá! (Fernando, Cristóval)

Por fim, não se podem ignorar os episódios de repressão e abuso da autoridade por parte das forças policiais. Normalmente as ideias de dureza e repressão são mais associadas pelos informantes à figura do “carabineiro”, mas também se contam episódios de transações que acabaram em situações de extrema violência protagonizadas pelas autoridades portuguesas, como me contou um dos informantes:

… tive problemas na vida, tive problemas graves. Tive um rapaz amigo que morreu como daqui ao tribunal, levou um tiro, entrou-lhe aqui num braço e saiu debaixo do outro braço, nem ai Jesus disse! (…) nessa vez já fui preso. Levava um saco de noventa quilos às costas de café cru (…). (Mateus, Vila)

O contrabando era, de facto, uma prática clandestina de elevado risco para os seus praticantes, podendo culminar em situações mais desfavoráveis como apreensões dos bens em transação, multas, prisões ou, em situações de extrema violência, como a que acabamos de referir, culminando na morte dos contrabandistas (Godinho, 2009).

 

A FRONTEIRA ENQUANTO ESPAÇO DE PARTILHA IDENTITÁRIA, CULTURAL E LINGUÍSTICA: UM ESTUDO INTERPRETATIVO DA ZONA RAIANA DE MELGAÇO

 

MARIA SALOMÉ ALVES DIAS

UNIVERSIDADE DO MINHO

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

OUTUBRO DE 2017