CONTRABANDO DE GADO NA HISTÓRIA
A PASTORÍCIA E “PASSAGEM” DE GADO NA SERRA DE LABOREIRO
A relação de vizinhança dos castrejos com os galegos de Milmanda e Araújo já estava consagrada numa carta de privilégio que D. Afonso V lhe tinha outorgado em Monção, a 4 de Julho de 1462. Desde o tempo dos reis D. João I e D. Duarte, pelo menos, que o concelho e homens bons de Castro Laboreiro tinham por costume vizinhar bem com os galegos, nomeadamente trocando pão e vinho e apascentando pacificamente os seus gados em Galiza, tal como os galegos em território do reino de Portugal. Queixando-se a D. Afonso V que os guardas dos portos os importunavam neste privilégio, o monarca “vendo o que nos asi rrequeriam e querendo lhes fazer graça e merçee a nos praz de elles vizinharem com os da dicta comarca asi como sempre fezeram atee ora”.
Esta conjuntura documental remete para uma particularidade interessante, a relação entre a pastorícia e o contrabando de gado, que vem a talhe de fouce, uma vez que este ano (no passado dia 27 de Abril) foi inaugurado em Melgaço o Espaço Memória e Fronteira, espaço museológico dedicado à recuperação da inestimável e multifacetada memória raiana melgacense, sobretudo de contrabando e emigração.
Desde a formação de Portugal, no século XII, que os Montes Laboreiro foram seccionados por uma linha de fronteira, formando uma raia seca de muitos quilómetros. Lagos Trindade afirma categoricamente que “a criação de uma fronteira entre os dois reinos não teve influência nos movimentos pastoris” e dá-nos uma perspectiva clara e bem documentada desses movimentos. Sobre o Laboreiro a autora regista, “por um foral manuelino temos conhecimento de uma ida de gados para Castro Laboreiro, embora não possamos falar do papel desta serra na transumância dos rebanhos dos nossos reinos, conquanto saibamos que foi de relevo o papel que desempenhou em relação aos rebanhos transumantes de Castela”.
Em Castro Laboreiro, vinda de tempos ancestrais, ainda perdura a muda das brandas para as inverneiras e vice-versa. É plausível que essas deslocações tenham a sua origem em migrações pastoris, com a singularidade que aqui se mudam animais, pessoas e utensílios. Mas estas deslocações sazonais no interior da freguesia de Castro Laboreiro não se enquadram no conceito de transumância, que pressupõe deslocações de longas distâncias, em busca de pastagens alternativas e fuga aos Invernos rigorosos.
Existe, no entanto, um documento que pode testemunhar um certo movimento de transumância do Laboreiro para o litoral, para utilização de pastos de Inverno. Trata-se de uma sentença de D. Afonso V a favor do mosteiro de Santa Maria do Carvoeiro, onde se refere o arrendamento dos montados das terras de Neiva e Aguiar aos vaqueiros da Galiza, Laboreiro e Monção. A deslocação dos gados de Castro Laboreiro, durante o Inverno, acaba por ser confirmada no foral da terra de Penela, outorgada por D. Manuel, em Lisboa, no dia 20 de Junho de 1514:
“Os montados da terra sam comuns aos vezinhos soomente no monte dazevelhe estaa por nos mordomo que aRenda o dito monte no Inverno aos pastores de fora segundo se com elle comcertam. a saber. aos gaados de Crasto Leboreiro E outro tanto fara no monte que dizem das Santas e nos outros montes os outros gaados paçerão livremente”.
Os gados de Castro Laboreiro iam pastar ao monte de Azevelhe e ao monte das Santas, terra de Penela. Validando, de certa forma, as deslocações nesta zona setentrional, no foral afonsino do concelho de Melgaço, datado de 1258, ficou registado que “nullus accipiat montaticum de ganatis de Melgazo”. O montado é o tributo que recai sobre o gado transumante, cobrado em cabeças de gado, de forma proporcional ao tamanho de cada rebanho ou manada que pastasse no local. Se o monarca isenta o gado de Melgaço de todo o montado é porque se trata de gado transumante.
Em relação aos rebanhos que vêm da Galiza, entrando e saindo pela raia seca do Laboreiro, os sedimentos documentais também não abundam ou não são conhecidos. Chamou-me particular atenção o micro-topónimo de Porto Mesta, nas proximidades do lugar da Seara. Será que tem alguma relação com a Mesta de Castela e a passagem de seus rebanhos transumantes?
A verdade é que nesta zona fronteiriça, sobretudo no planalto do Laboreiro, basta uma pequena passada para, em qualquer sítio, se atravessar de um reino para o outro, sem qualquer dificuldade – a fronteira é uma mera linha limítrofe imaginária marcada por alguns afloramentos rochosos ou outros elementos naturais salientes na paisagem agreste. Desta forma estão criadas as condições propícias, não só para a passagem lícita do gado transumante, mas também para o contrabando de animais e outros produtos. No longínquo século XV por aqui se contrabandeava sal, cera e manteiga, entre outras mercadorias.
Ao longo da raia seca, o ponto nevrálgico de trânsito medieval de pessoas, mercadorias e animais, entre Galiza e Portugal, foi sempre o Porto dos Asnos, lugar meeiro das freguesias de Lamas de Mouro e Castro Laboreiro. Desde a recuada Idade Média que, vindo directamente de Galiza ou por Castro Laboreiro, todos os caminhos, praticamente, passam por esse Porto. Daí aparta-se uma via para Melgaço, pelo vale do rio Trancoso, e outra atravessa a freguesia de Lamas de Mouro, bifurcando-se, mais à frente, em direcção a Valadares e aos Arcos de Valdevez.
Desde o tempo do rei D. Pedro I se contrabandeava em força pelo Porto dos Asnos, ao ponto de o monarca, por diploma de 28 de Maio de 1361, interditar este caminho de Lamas de Mouro, desde o dito Porto dos Asnos até à Ponte do Mouro, obrigando os mercadores a passar com os seus produtos por Melgaço. O caminho alternativo para Melgaço, referido por este monumento, só pode ser o que vai pelo vale do rio Trancoso, passando nas proximidades do mosteiro de Santa Maria de Fiães. Deste cenóbio até à vila de Melgaço foi traçada uma via medieval por Ferreira de Almeida, com base no testemunho do cronista Fernão Lopes: “E depois se veio a Rainha ao mosteiro de Feãees, huma leguoa de Melguaço”. Mas este autor não fez a ligação com o Porto dos Asnos. No entanto, não há dúvida que este caminho alcançava o Porto dos Asnos e continuava até à vila de Castro Laboreiro, conforme testemunhou Pero Mouro, criado alguns anos em Castro Laboreiro, à demarcação do termo de Melgaço, em 1538.
O Porto dos Asnos e o de Meijoanes são referidos, por este testemunho, como pontos frequentes de passagem de bestas e gado: “que d’anos pera qua os galegos se lhe metem por dentro do termo a lugares tyro de besta e a lugares dois e ao Porto de Mey Joanes e dos Asnos ahi tomam bestas e gado que por hy pasa contra direito e isto faz o concelho de Milmanda que come disso e roubam hy os portugueses por o qual lugar pasa a estrada que vay desta villa de Mellgaço pera Crasto Leboreyro e isto sabya pasar da dicta maneyra por o elle ver vyvendo em Crasto muitos anos”.
O contrabando, susceptível de gerar conflituosidades, preocupa ambas as monarquias e necessitava de ser contrado de ambos os lados.
A PASTORÍCIA E “PASSAGEM” DE GADO EM CASTRO LABOREIRO
José Domingues
Boletim Cultural nº 6
Melgaço, 2007