Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

CAPELAS, IGREJAS, MOSTEIROS - A ARTE ROMÂNICA EM MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 29.07.23

869 b Igreja de Castro Laboreiro.jpg

 igreja de castro laboreiro

 

A ARTE ROMÂNICA NA ANTIGA DIOCESE DE TUI:

AS RELAÇÕES ARTÍSTICAS GALAICO-MINHOTAS

 

Margarita Vázquez Corbal*

Na arte românica da antiga diocese tudense, a arquitectura tem uma estreita relação de interdependência com a escultura. Embora seja considerada rural e mesmo pobre, devemos enfatizar a sua singularidade, especialmente quanto ao uso de decoração escultórica. As estruturas e motivos são o resultado de um importante processo de absorção das correntes artísticas europeias, feita através das catedrais de Tui, Compostela, Braga, Ourense e das igrejas cistercienses de finais do século XII, e da reutilização do passado como exemplo: a influência castreja que aparece no gosto pelas formas geométricas nas hexapétalas herdadas da decoração dos castros como o de Castro Laboreiro (Melgaço, Portugal) e Santa Tegra (A Guarda, Pontevedra), que se reflectem em exemplares românicos como o de Santa María de Castrelos (Vigo, Pontevedra). A herança pré-românica refletida no uso do sogueado no capitel de São Salvador de Paderne (Melgaço, Portugal) ou na decoração de uma arquivolta de S. Vicente de Barrantes (Tomiño, Pontevedra) que apresenta uns arquinhos similares aos da igreja de S. Pedro de Balsemão (Lamego, Portugal). Outro nexo comum destas relações artísticas Galaico-Minhotas está nas tradições e na cultura popular comum, como acontece com os motivos apotropaicos e de longa tradição popular, como o serpentiforme de Sans Fins de Friestas (Valença, Portugal) ou o canídeo ou leão de Santa María da Porta (Melgaço, Portugal), referindo a atitude de guarda e proteção que devem ter os que entram na igreja e no espaço sagrado, embora os animais da Capela de Nossa Senhora da Orada (Melgaço, Portugal) sejam parte do motivo da árvore da vida, que também aparecem na área galega da diocese no tímpano de S. Miguel de Pexegueiro (Tui, Pontevedra), que se relacionam com o grifo e o dragão em luta, representação da batalha entre o bem e o mal do tímpano norte de São Cristóvão de Rio Mau.

É importante a presença no entorno diocesano de oficinas itinerantes que fazem cópias sistemáticas que respondem a programas iconográficos idênticos ou com intenção semelhante. É o caso, por exemplo, da que fez o tímpano de S. Salvador de Albeos (Crecente, Pontevedra), cuja Maiestas Domini tem traços comuns às de Bravães (Ponte da Barca, Portugal) e Rubiães (Paredes de Coura, Portugal). Podemos dizer que as oficinas que trabalham na zona conhecem a linguagem das artes de ambas as margens do Minho e que partilham mestres e canteiros.

 

*Doutoranda do Departamento de História da Arte da Universidade de Santiago de Compostela (Espanha)

 

Incipit 2. Workshop de Estudos Medievais da Universidade do Porto

2011-2012

POPULAÇÃO DO CONCELHO DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 22.07.23

862 b melgaco-e1509465664447.jpg

POPULAÇÃO

 

A partir de 1960, o concelho apresentou sempre uma diminuição da população resultante de variações negativas do saldo fisiológico e migratório. O êxodo rural e a emigração, seguido do envelhecimento da população que permaneceu residente no concelho, refletiu-se em acentuadas quebras populacionais. De 1960 para 2001 foi registada uma variação negativa da população de – 82.1%.

Entre 1991 e 2001 a população do concelho de Melgaço diminuiu de 11018 para 9996 indivíduos (-9.2%). A nível de NUT III, Minho-Lima, verificou-se uma variação nula da população correspondente a uma taxa de variação de 0.09%. Ao contrário destas duas unidades territoriais, a Região Norte registou um aumento populacional de 6.18% indivíduos.

Entre a década de 80 e 90, a diminuição de população terá resultado mais do aumento da taxa de mortalidade derivado do envelhecimento da população do que da saída da população do concelho.

Os dados são preocupantes para o concelho. No entanto, no presente, começa a fazer-se notar a vontade de os jovens permanecerem residentes no concelho. O empreendedorismo jovem está a ganhar força nos últimos anos e a gerar investimento em Melgaço, o que leva a crer que os dados de variação populacional acima descritos poderão ser invertidos em breve. A produção vinícola, o mercado imobiliário e o turismo são três das áreas que mais têm atraído o investimento de jovens naturais do concelho.

 

REABILITAÇÃO NO CENTRO HISTÓRICO DE MELGAÇO – ESTUDO DE CASO

Joana Cristina Sousa Cerqueira Luís

Mestrado Integrado em Engenharia Civil – 2017/2018

Departamento de Engenharia Civil

Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto

Porto

2018

joana sousa cerqueira luís.jpeg

drª joana cerqueira luís

CONTRABANDO DE GADO NA HISTÓRIA

melgaçodomonteàribeira, 15.07.23

835 b estr avel cachenas.jpg

A PASTORÍCIA E “PASSAGEM” DE GADO NA SERRA DE LABOREIRO

 

A relação de vizinhança dos castrejos com os galegos de Milmanda e Araújo já estava consagrada numa carta de privilégio que D. Afonso V lhe tinha outorgado em Monção, a 4 de Julho de 1462. Desde o tempo dos reis D. João I e D. Duarte, pelo menos, que o concelho e homens bons de Castro Laboreiro tinham por costume vizinhar bem com os galegos, nomeadamente trocando pão e vinho e apascentando pacificamente os seus gados em Galiza, tal como os galegos em território do reino de Portugal. Queixando-se a D. Afonso V que os guardas dos portos os importunavam neste privilégio, o monarca “vendo o que nos asi rrequeriam e querendo lhes fazer graça e merçee a nos praz de elles vizinharem com os da dicta comarca asi como sempre fezeram atee ora”.

Esta conjuntura documental remete para uma particularidade interessante, a relação entre a pastorícia e o contrabando de gado, que vem a talhe de fouce, uma vez que este ano (no passado dia 27 de Abril) foi inaugurado em Melgaço o Espaço Memória e Fronteira, espaço museológico dedicado à recuperação da inestimável e multifacetada memória raiana melgacense, sobretudo de contrabando e emigração.

Desde a formação de Portugal, no século XII, que os Montes Laboreiro foram seccionados por uma linha de fronteira, formando uma raia seca de muitos quilómetros. Lagos Trindade afirma categoricamente que “a criação de uma fronteira entre os dois reinos não teve influência nos movimentos pastoris” e dá-nos uma perspectiva clara e bem documentada desses movimentos. Sobre o Laboreiro a autora regista, “por um foral manuelino temos conhecimento de uma ida de gados para Castro Laboreiro, embora não possamos falar do papel desta serra na transumância dos rebanhos dos nossos reinos, conquanto saibamos que foi de relevo o papel que desempenhou em relação aos rebanhos transumantes de Castela”.

Em Castro Laboreiro, vinda de tempos ancestrais, ainda perdura a muda das brandas para as inverneiras e vice-versa. É plausível que essas deslocações tenham a sua origem em migrações pastoris, com a singularidade que aqui se mudam animais, pessoas e utensílios. Mas estas deslocações sazonais no interior da freguesia de Castro Laboreiro não se enquadram no conceito de transumância, que pressupõe deslocações de longas distâncias, em busca de pastagens alternativas e fuga aos Invernos rigorosos.

Existe, no entanto, um documento que pode testemunhar um certo movimento de transumância do Laboreiro para o litoral, para utilização de pastos de Inverno. Trata-se de uma sentença de D. Afonso V a favor do mosteiro de Santa Maria do Carvoeiro, onde se refere o arrendamento dos montados das terras de Neiva e Aguiar aos vaqueiros da Galiza, Laboreiro e Monção. A deslocação dos gados de Castro Laboreiro, durante o Inverno, acaba por ser confirmada no foral da terra de Penela, outorgada por D. Manuel, em Lisboa, no dia 20 de Junho de 1514:

Os montados da terra sam comuns aos vezinhos soomente no monte dazevelhe estaa por nos mordomo que aRenda o dito monte no Inverno aos pastores de fora segundo se com elle comcertam. a saber. aos gaados de Crasto Leboreiro E outro tanto fara no monte que dizem das Santas e nos outros montes os outros gaados paçerão livremente”.

Os gados de Castro Laboreiro iam pastar ao monte de Azevelhe e ao monte das Santas, terra de Penela. Validando, de certa forma, as deslocações nesta zona setentrional, no foral afonsino do concelho de Melgaço, datado de 1258, ficou registado que “nullus accipiat montaticum de ganatis de Melgazo”. O montado é o tributo que recai sobre o gado transumante, cobrado em cabeças de gado, de forma proporcional ao tamanho de cada rebanho ou manada que pastasse no local. Se o monarca isenta o gado de Melgaço de todo o montado é porque se trata de gado transumante.

Em relação aos rebanhos que vêm da Galiza, entrando e saindo pela raia seca do Laboreiro, os sedimentos documentais também não abundam ou não são conhecidos. Chamou-me particular atenção o micro-topónimo de Porto Mesta, nas proximidades do lugar da Seara. Será que tem alguma relação com a Mesta de Castela e a passagem de seus rebanhos transumantes?

A verdade é que nesta zona fronteiriça, sobretudo no planalto do Laboreiro, basta uma pequena passada para, em qualquer sítio, se atravessar de um reino para o outro, sem qualquer dificuldade – a fronteira é uma mera linha limítrofe imaginária marcada por alguns afloramentos rochosos ou outros elementos naturais salientes na paisagem agreste. Desta forma estão criadas as condições propícias, não só para a passagem lícita do gado transumante, mas também para o contrabando de animais e outros produtos. No longínquo século XV por aqui se contrabandeava sal, cera e manteiga, entre outras mercadorias.

Ao longo da raia seca, o ponto nevrálgico de trânsito medieval de pessoas, mercadorias e animais, entre Galiza e Portugal, foi sempre o Porto dos Asnos, lugar meeiro das freguesias de Lamas de Mouro e Castro Laboreiro. Desde a recuada Idade Média que, vindo directamente de Galiza ou por Castro Laboreiro, todos os caminhos, praticamente, passam por esse Porto. Daí aparta-se uma via para Melgaço, pelo vale do rio Trancoso, e outra atravessa a freguesia de Lamas de Mouro, bifurcando-se, mais à frente, em direcção a Valadares e aos Arcos de Valdevez.

Desde o tempo do rei D. Pedro I se contrabandeava em força pelo Porto dos Asnos, ao ponto de o monarca, por diploma de 28 de Maio de 1361, interditar este caminho de Lamas de Mouro, desde o dito Porto dos Asnos até à Ponte do Mouro, obrigando os mercadores a passar com os seus produtos por Melgaço. O caminho alternativo para Melgaço, referido por este monumento, só pode ser o que vai pelo vale do rio Trancoso, passando nas proximidades do mosteiro de Santa Maria de Fiães. Deste cenóbio até à vila de Melgaço foi traçada uma via medieval por Ferreira de Almeida, com base no testemunho do cronista Fernão Lopes: “E depois se veio a Rainha ao mosteiro de Feãees, huma leguoa de Melguaço”. Mas este autor não fez a ligação com o Porto dos Asnos. No entanto, não há dúvida que este caminho alcançava o Porto dos Asnos e continuava até à vila de Castro Laboreiro, conforme testemunhou Pero Mouro, criado alguns anos em Castro Laboreiro, à demarcação do termo de Melgaço, em 1538.

O Porto dos Asnos e o de Meijoanes são referidos, por este testemunho, como pontos frequentes de passagem de bestas e gado: “que d’anos pera qua os galegos se lhe metem por dentro do termo a lugares tyro de besta e a lugares dois e ao Porto de Mey Joanes e dos Asnos ahi tomam bestas e gado que por hy pasa contra direito e isto faz o concelho de Milmanda que come disso e roubam hy os portugueses por o qual lugar pasa a estrada que vay desta villa de Mellgaço pera Crasto Leboreyro e isto sabya pasar da dicta maneyra por o elle ver vyvendo em Crasto muitos anos”.

O contrabando, susceptível de gerar conflituosidades, preocupa ambas as monarquias e necessitava de ser contrado de ambos os lados.

 

A PASTORÍCIA E “PASSAGEM” DE GADO EM CASTRO LABOREIRO

José Domingues

Boletim Cultural nº 6

Melgaço, 2007

 

NUMA FRAGA, O COTINHO III

melgaçodomonteàribeira, 08.07.23

120 vila cast lab.jpg

 

(continuação)

 

O tempo foi mais amigo no regresso, algumas nuvens juntaram-se para acompanhar a descida, ameaçando borrasca para o fim do dia. Os mais velhos discutiam se choveria ou não, a jovem atreveu-se a aventar a hipótese de a chuva fazer nascer a água no coto e viu o olhar fulminante do guardião do grupo a mandá-la estar caladinha, não disse mas poderia ter-se ouvido que com coisas sérias não se brinca, ela não era nenhuma criancinha já mas também não tinha ainda idade para ter voz.

Parece que a desilusão de quem estava à espera de garrafas e garrafão de água santa foi maior do que a dos corajosos que tinham feito a subida ao monte para a ver com os próprios olhos e colhê-la com as próprias mãos. A notícia da falta de água correu pelo lugar inteiro e não faltou quem lembrasse a história de uma moça do Ribeiro, ou da Peneda, vá-se lá saber agora de onde seria. Estava a dita sentada no coto, à beira do pocinho e resolveu pentear-se. Naqueles tempos em que o tempo dedicado à higiene e embelezamento do corpo era escasso, pois a vida era só trabalho de sol a sol, da segunda a sábado, e o domingo era para ir à missa e lavar a roupa, mais trabalho portanto, as raparigas que sabiam que a aparência contava, aproveitavam muitas vezes parte do tempo em que vigiavam os animais no monte para se pentearem. Reza a lenda que a tal moçoila tirou os pentes da algibeira, desfez as tranças (naquele tempo toda a mulher honesta usava o cabelo entrançado e preso numa rosca na nuca) e começou a pentear-se. Todos sabem que para pentear uma cabeleira que raras vezes é lavada, são necessários dois pentes e água. Primeiro usa-se um pente com os dentes grossos e espaçados, um pente normal, por assim dizer. Depois, quando o cabelo já está todo desenleado, com o pente a deslizar sem resistência, utiliza-se o segundo, de dentes finos e muito próximos, havendo quem lhe chame um pente de chispar, talvez porque afugenta os piolhos, estes caem que nem chispas. Com este, para um pentear mais perfeito, convém usar água, que se espalha com a concha da mão sobre a cabeça ou se molha o pente dentro de um recipiente. Ora está-se mesmo a ver que a pastora que penteava os seus longos, muito provavelmente negros cabelos, à beira do pocinho da água santa, para não se molhar, mergulhou o pente na cova natural, deixando cair alguns cabelos. Vendo-os sobre a água e consciente de que estava a conspurcar um lugar e líquidos sagrados, depois de atar o cabelo, a rapariga afadigou-se a retirar toda a água da cova para a limpar. Para sua enorme surpresa, aquilo que ela esperava e que tantas vezes ouvira contar desde a sua meninice, não aconteceu. Em vez de o pocinho se encher de novo com a água pura e transparente que lá estava desde tempos imemoriais, começaram a saltar sapos e saramelas e ela fugiu, apavorada. Não sabiam contar como é que a água voltara depois ao local. Sabia-se, nisso ninguém de boa-fé duvidava, que por mais água que se retirasse, voltava a nascer mais e o poço estava sempre cheio e nunca secava. A convicção dos poderes daquela água fazia com que muita gente fizesse o difícil e demorado percurso para a ter em casa e dela se servir para usos mais ou menos confessáveis. Os desiludidos desta história é que não se converteram à lenda.

 

                                                                            Olinda Carvalho

 

Publicado em A Voz de Melgaço

Setembro 2014

 

NUMA FRAGA O COTINHO II

melgaçodomonteàribeira, 01.07.23

118 - 1914-feira quinz castro laboreiro.jpg

 

(continuação)

O caminho para as águas santas coincide durante um bom bocado com uma calçada romana, pelo menos é o que o povo diz, custando a crer, porém, que os milicianos de César se dessem a tanto trabalho para abrir e manter vias por encostas tão árduas e que aparentemente não conduziam a lado algum. Sempre a subir, curvando ora à direita ora à esquerda, são vários quilómetros que fizeram suar as estopinhas a muito pastor, a muito roçador de tojos, a muito animal de carga obrigado a transportar sustento e material para lhe fazerem a cama que, depois de transformada em estrume, voltaria a carregar talvez de novo encosta acima.

A vista é quase sempre deslumbrante, ampla, alguns lugarejos distantes a lembrarem que afinal há gente por aquelas bandas, para usufruir de ares tão puros, do azul de um céu tão luminoso que, à hora de mais calor, até fere a vista, obrigando a olhar para o chão e sempre a voltar as costas ao astro rei. As peregrinas mais velhas paravam, de vez em quando, para um curto repouso mas também para relembrar peripécias juvenis que associavam ao evento. A tia Palmira pediu uma pausa maior, o seu coração não gostava de subidas, e sentaram-se. Entretanto, Justino, que se limitava a subir, um pé atrás do outro, passo a passo, sem entrar no tagarelar das mulheres, continuou com as crianças, não sem antes explicar que era só seguir a calçada e quando a mesma acabasse estaria ele à espera num altinho, não havia nada que enganar.

Durante todo o percurso não se encontra água, nem de nascente nem de corga ou poça nalgum campo de feno mais afastado das casas. O calor não apoquentava por demasia mas a dureza da caminhada convidava a beber e, golinho agora, golinho logo, a água ia descendo nas garrafas. A mãe da pequenada alertava para não beberem tudo antes de chegar, era preciso deixar alguma para o piquenique, no final da subida ia saber melhor água do que Coca-Cola, esperassem para ver.

Juntou-se o grupo todo num planalto inesperado. Quem diria que após tanto subir se iria dar a um espaço tão amplo? Havia vacas a pastar e muitos cavalos, os afamados garranos que os proprietários das aldeias vizinhas largam no monte e vivem à solta, sem lei nem dono a domá-los. Dizem que são selvagens mas pouco, não fogem quando veem humanos, limitam-se a olhar altivamente e a manter alguma distância. Às vezes, um macho, com fêmeas ou crias por perto, pode oferecer algum perigo, mas aí cumpre ao homem respeitar o animal e não invadir o seu espaço. Não há notícias significativas de ter havido ataques por parte destes animais livres e belos no seu espaço natural, embora haja sempre medos ancestrais que afastam naturalmente os menos audazes. Naquele contexto, respeitando os conselhos do homem do grupo e também das mulheres mais experientes, as crianças mantiveram-se afastadas e sossegadas, olhando de longe, admirando sobretudo as mães e os potros, que havia de vários tamanhos e cores, um bem negro, dois ou três quase brancos, vários em tom de castanho. E a caminhada prosseguiu, com algum cansaço a dar sinal, dando-se por terminada três boas horas depois de iniciada.

Subiram ao coto. Água, nem sinal dela. Se calhar não era ali, alvitravam todos os que nunca lá tinham estado. As crianças corriam, procurando a fonte encantada. Justino e Maria garantiam que o local era aquele, não havia água, tinham-se dado ao trabalho de fazer pouco dos poderes de quem podia mais do que a gente, tinham o resultado à vista: a santa secara a fonte. E mais não disse. Sentou-se e preparou-se para comer a merenda. O mesmo fizeram os outros todos. Como se de uma festa se tratasse, partilharam-se petiscos, apesar da abundância não ter nada a ver com a de uma merenda festiva. Tostadas ninguém levara mas as velhotas rememoraram tempos idos e farnéis fartos, com uma enumeração detalhada de tudo a que tinham direito numa festa como a de São Bento ou a da Senhora da Boa Vista, no tempo em que se ia comer à sombra dos carvalhos e se convidavam os passantes para partilhar um naco de carne ou um prato de aletria ou arroz doce e beber uma pinga.

A deceção foi grande mas durou pouco tempo, se calhar porque a expetativa era pequena. Surgiu do nada, logo de foi, com as lembranças de antigamente, a algazarra da pequenada e a pose diante da máquina fotográfica, que alguém levara para assinalar o momento. Algumas das fotografias do grupo que todos os participantes receberam teriam direito a moldura e a figurar em sala de visitas. Foi um dia de convívio entre pessoas reunidas com um objetivo inalcançável à partida para alguns, que a falta de fé dos mesmos fez gorar para outros. Vá-se lá saber se alguém tinha razão e quem! Mais tarde viria a constar que o guia da expedição ficou agastado, sentira-se de certo modo humilhado, daí não ter dado um pio desde que foram confrontados com a ausência de água.

 

(continua)