ÁGUA DE MELGAÇO EM MANAUS - SEC. XIX E XX
festa da cultura, anos 1980
DA ÁGUA DOS RIOS ÀS ÁGUAS ENGARRAFADAS
Tratamos aqui de estabelecer uma pesquisa não com o artefacto em si: a garrafa de água termal da marca portuguesa, “Águas de Melgaço”. Mas com um contexto que acabou por ser materializado durante o final do século XIX e início do século XX, estabelecido com diferentes partes do mundo, sendo uma delas, Manaus.
Os exemplares estudados no Laboratório de Arqueologia Alfredo Mendonça ilustram a frase em alto-relevo impressa no vidro da garrafa, e que foram consideráveis na pesquisa que se seguiu. As Águas de Melgaço acabaram por se transformar numa ferramenta para uma análise sociocultural da sociedade manauara através do seu consumo.
Em que se pese que ao analisar a cultura material como fruto de uma sociedade e suas especificidades, possa-se também estar considerando como a cultura do consumo modifica a própria sociedade, e esta, por sua vez, colore em diferentes tons essa cultura: é um processo recíproco (Lima, 1985).
Há de se considerar que a cultura do consumo exposta através do marketing das Águas de Melgaço torna-se uma janela ampla na compreensão dos mecanismos que mantém a sociedade em constante funcionamento e modificação, e como estes são possibilidades de pesquisa e investigação (Trigger, 2004).
A “Águas de Melgaço” faz com que reconheçamos as relações entre os bens de consumo e a sociedade manauara, explicados por McCracken (2003), e nos faz entrever e compreender como um bem diferente de todos os outros encontrados no mercado local do período, pode influenciar a cultura de consumo, e nos faz avaliar as possíveis consequências e mudanças sociais causadas pela circulação da marca na cidade de Manaus.
Pode-se reconhecer, através dos resultados até agora obtidos, que o grande sucesso e fama obtidos pela marca em questão não foi apenas o resultado da qualidade do produto ou excentricidade deste. Na verdade, deveu-se muito mais às táticas propagandísticas traduzidas em promoção publicitária que, além de ser em grande número, possui agregado em si valor simbólico que pôde atuar de forma a moldar hábitos, influenciar o consumidor e criar uma imagem idealizada do produto, que é a água engarrafada portuguesa em questão.
As Águas de Melgaço em Manaus do início do século XX serviram como fontes de recursos e meios pelos quais podemos visualizar as trocas culturais de uma sociedade de consumo e seus contextos. De elemento da natureza, facilmente obtida nos muitos rios e igarapés da região, usada no lazer, nos balneários públicos, para água engarrafada e consumida por parte da população a “preços módicos” como se lia no seu rótulo.
Esta água medicinal portuguesa como cultura material daquele contexto vem ilustrar o estabelecimento de normas, proibições, tabus e hierarquia político-social estabelecida através da propaganda que massifica o seu aspecto curativo e medicinal. “A água, na medida em que é hierarquizada, tem uma história (…). É em torno destes parâmetros que se constroem as representações sociais sobre a água)” (Quintela, 2003, p. 180).
Levar em consideração que as formas de expressão artística e publicitárias relacionadas a produtos medicinais e afins possuem poder de influência no comportamento do público consumidor é reafirmar a existência de interações intrínsecas entre o simbólico e o imaginário com o meio cultural e material.
A água comum, aquela que mata a sede, também foi utilizada como copartícipe de uma série de ritos formadores da cultura e do consumo daquele contexto. Bem como serviu para extinguir, sanitarizar, higienizar e expurgar para a periferia uma série de práticas sociais que não condiziam com a lógica globalizante e capitalista. Contribuindo para uma política de classes na época e tirando uma oportunidade daqueles que estavam à margem desse sistema, e cujo paradoxo era o de não possuir meios necessários para consumir a água engarrafada. As Águas de Melgaço não só selaram um contexto em seus rótulos, como também selaram as muitas vidas de quem continuava com sede: ora com a sede de uma sobrevida melhor, ora com a sede de quem a tinha como fetiche de consumo.
A SAÚDE ENGARRAFADA NAS ÁGUAS DE MELGAÇO:
CULTURA E CONSUMO NA MANAUS DO SÉCULO XIX-XX
Tatiana de Lima Pedrosa Santos
Doutorado em História
Universidade do Estado do Amazonas
Samuel Lucena de Medeiros
Mestrando em História
Universidade do Estado do Amazonas
2018