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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

CEM ANOS DE RETALHOS DE UMA FAMÍLIA 1852-1952 V

melgaçodomonteàribeira, 09.07.22

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CAPÍTULO V

 

A Conceição Costa, mulher do Félix, passou os tormentos da vida para parir os dezoito e criar os dez que sobreviveram, com altos e baixos financeiros. É certo que os maiorzinhos ajudavam a cuidar dos menores deixando-lhe algum tempo para amanhar a horta, e ir e vir do moinho com os foles de milho e farinha à cabeça. Às vezes o cansaço era tanto que naquele vai e vem, já de noite, tropeçava e caía derramando o conteúdo do fole. Jurava a pés juntos que fora empurrada pelas feiticeiras. Esses personagens lendários, bruxas e feiticeiras, eram, na época, parte integrante da cultura daquele povo a quem se atribuía todos os factos inusitados e inexplicáveis. Havia feiticeiras para todos os gostos. As brincalhonas, as malvadas que se comprasiam as projudicar e as agourentar que pressagiavam eventos catastróficos ou a próxima morte de alguma pessoa.

A Conceição era uma dessas criaturas que acreditava piamente na existência do sobrenatural. Mais tarde, viúva e idosa sujeita a contracções musculares, afirmava que durante a noite o falecido marido lhe pusera as mãos nas costas, braços ou cabeça.

À medida que os filhos cresciam novos sarilhos sobrevinham. As filhas, quando ganhavam corpo de mulher o que acontecia bem cedo, mulheres bonitas e bem feitas, produto apurado de Godos e Celtiberos, tornavam-se a gula de todos os rapazes das redondezas.

A Maria Josena, a mais velha das raparigas, engraçou-se e deixou-se engraçar prlo Luiz Garcia, rapaz bem parecido, do lugar, dinâmico e sonhador. Para reparar a excitação juvenil que resultou em gravidez, o Luiz, meio contra gosto acabou casando com a namorada. Ao primeiro filho, Artur, seguiu-se o Roberto. A vida sem perspectivas do lugar e as notícias dos que se abalavam mexia com a cabeça de todos os jovens. O Luiz e a Maria Josena também almejaram buscar melhor vida. Ao final de muita lamúria a mãe Conceição com a acordância do Félix, concordou em ficar com as crianças. De resto já se convencera que a sua sina era cuidar de crianças, suas, das filhas e quem sabe de quem mais. A Josena e o Luiz emigraram para o estrangeiro. Houve boatos, muito tempo depois que teriam ido para a África. O certo é que não mais aconteceu contacto. O Artur e o Roberto fizeram-se homens de bem ao lado da avó e como todos debandaram para longe. O Artur ficou no país e mais tarde, já com família, voltou e radicou-se na terra. O Roberto foi para a África dando notícias da família que construiu.

O Augusto do Félix, em Belém do Pará, ganhara a amizade e confiança do patrão de quem passara até a ser confidente. Era tanta a confiança que o proprietário da alfaiataria Portas de São Miguel querendo proporcionar uma viagem de recreio a uma das amantes, incumbiu o Augusto de acompanhá-la para dar uma versão de que era este o namorado daquela mulher.

Foi assim que, quatro anos após a sua chegada ao Brasil o Francisco Augusto regressou a Portugal como pagem da concubina do seu patrão, viagem paga e alguns meses de férias.

Depois de se desembaraçar da amante do chefe o Augusto rumou para a sua terra. Chegou a Melgaço quase de surpresa. Enviara um telegrama que chegou dias antes.

A euforia da família foi enorme especialmente de sua mãe Conceição, que, via naquela visita após tão pouco tempo de permanência nas terras do Brasil, pronúncio de furtúnio temporão, quem sabe a sorte extraordinária que costuma brindar uns poucos que nascem com o trazeiro virado para a lua não beneficiou seu filho? Se bem que ela não se lembrava seu filho ter nascido naquela posição.

Chegou o Augusto como autêntico brasileiro, a carácter. Fato branco impecável no corte mas empoeirado pela viagem terrestre no comboio e nas carroças desde o porto do desembarque até àquelas lonjuras, na serra.

O chapéu panamá na cabeça e a bengala encastoada de prata davam o toque de requinte indispensável. Quando o carro de burros que fazia a carreira de Valença apontou na Loja Nova, os rapazotes que por ali costumavam vagabundear na espectativa de carregar alguns pacotes ou malas de possíveis viajantes, reconheceram o Augusto do Félix, largando-se em desabalada, anunciando a boa nova ao povo da terra, uns, outros foram dar a notícia à mãe, a tia Conceição Félix que, mesmo anoitecendo ainda se achava ali perto, no depósito de milho, ramo de negócio que mantinha de sociedade com a Dona Ludovina da Loja Nova, e ainda outros rapazes fazendo questão de carregar a bagagem do Augusto, duas malas e um grande baú de porão, cartão de visita anunciando luxo e abastança. A mãe correu a abraçar o filho e de relance não deixou de reparar no imponente baú que lhe suscitou a confirmação da boa sorte do filho. Ao mesmo tempo ocorreu-lhe um pensamento nefasto: outros haviam trazido bonitas e pesadas malas que, mais tarde, soubera-se estarem cheias de objectos sem valor e pedras, maneira de ser bem recebidos aparentando riqueza. Aquele baú do Augusto vinha recheado de fortuna diferente que teve utilidade por anos a fio na mão dos filhos, a fortuna da cultura. A bonita arca estava recheada de livros e revistas.

O pouco dinheiro que o Augusto trazia dava para fazer a figuraça que pretendia e a tradição exigia uma vez que não era sua intenção prolongar a estadia, de acordo com o seu patrão.

No desfile desde a Loja Nova até sua casa no Carvalho, dentro da vila, Augusto, sua mãe, os carregadores e outros parentes que acorreram ao anúncio dos arautos que tinham espalhado a notícia, foram festejados pela população que morava no trajecto e outros que por curiosidade vieram apreciar a novidade. Na verdade o Augusto do Félix despertava a atenção. Trajando a rigor na concepção do estilo brasileiro, desde os sapatos de verniz brancos e pretos, até ao chapéu, gravata de laço e bengala, espelho, bonitão, esbanjando a juventude dos seus vinte e dois anos, era realmente uma atração.

                                                                                   M. Félix Igrejas