CEM ANOS DE RETALHOS DE UMA FAMÍLIA 1852-1952 IV
CAPÍTULO IV
O Ismael embarcara para o Brasil com as despedidas formais e promessa de casamento por procuração logo que a vida lhe sorrisse. As famílias resignaram-se àquele destino comum. A Jelcemina não compareceu à despedida. Desde que a viagem fora anunciada e confirmada ficara arredia e triste. Passou o primeiro, o segundo mês e o Ismael não mandou notícias. Nunca mais deu sinais de vida, pelo menos para a namorada. Para a família, sim. A rapariga, taciturna, pouco comia, emagreceu, perdeu a cor trigueira, perdeu o gosto de tudo. O desgosto da partida do seu derriço tirou-lhe a vontade de viver. Os Violas eximiam-se de qualquer responsabilidade. Amargurada a Jelcemina definhava dia a dia. Fisicamente vulnerável achou de tomar banho na poça do campo do Chãos. O inverno se avizinhava, a água estava excessivamente fria, quase gelada. Naquele organismo enfraquecido sobreveio uma pneumonia. Talvez fosse aquilo que ela buscava. Não resistiu, faleceu. As más línguas insinuavam que havia algo mais de que ela se envergonhasse.
Os momentos finais da moça foram terrívelmente dolorosos. No auge da febre debatia-se e gritava pelo seu Ismael. Uma visão passou pela sua imaginação que em voz sumida transmitia aos que, chorosos, a rodeavam. Dizia ver o Ismael muito pálido mas bonito, vestido de branco, rodeado de flores e velas.
A partir do falecimento da Jelcemina a animosidade entre Félix e Violas cresceu, com acusações de uns e desculpas de outros. Do Ismael nada se soube, apenas que estava lá para o Pará.
O Carlinhos, da ilustre família Barros Ferreira, conceituada e abastada, foi transferido para a sua terra chefiando a secção dos correios. Físicamente era uma figura grotesca. Baixote, cabeça grande, desproporcional, corcunda, usava grandes bigodes retorcidos e calvice acentuada nas têmporas. Contudo, era pessoa educada, afável, tornando-se simpático. Solteirão, já entrado em anos, precisou de alguém que lhe tomasse conta da casa, espécie de governanta. A sua família morava ali na vila, na casa perto da igreja conhecida como o casa da torre, mas ele desejava continuar independente. Foi-lhe indicada, pelos parentes, uma rapariga desembaraçada, capaz de preencher o lugar. Era a Esmeralda, a sexta filha do Félix e Conceição.
Aos filhos homens o Félix ensinou a sua profissão. O mais novo, Eduardo Augusto, aborrecia bastante os pais com seu génio irrequieto e revoltoso. Não aceitava e sempre que podia transgredia as normas estabelecidas pela sociedade do lugar. As pessoas humildes, os plebeus, obrigatoriamente tinham de andar de cabeça coberta em todos os lugares públicos. Boné, gorro, garruço, boina, chapéu os que o herdaram da família, alguma coisa teria de cobrir-lhe a cabeça. Os fidalgos e os burgueses, “pessoas de bem”, tinham o privilégio de andar de cabeça descoberta sempre que isso lhes aprouvesse. A maneira de mostrar respeito aos mais bem situados na vida, ou seja, a forma dos humildes se declararem subservientes era, ao cruzar com aquelas pessoas gradas, tirarem o chapéu ou o que lhes cobrisse a cabeça numa respeitosa e submissa reverência. Quem não cumprisse tal código de ética corria o risco de séria admoestação ou castigo. Foi o que aconteceu ao Eduardo do Félix. Garotão senhor do seu nariz detestava as imposições sociais descabidas. Bonitão achava de poder mostrar-se como muito bem entendesse. Um dia de domingo teve a coragem de andar passeando pela vila com colegas, de cabeça descoberta. Aquilo causou admiração e constrangimento nas pessoas mais velhas e repulsa naqueles que teriam de ser reverenciados. O acontecimento chegou aos ouvidos do Félix Igrejas que mandou chamar o filho por um irmão e chegando em casa ouviu o rapaz um sermão em regra. Ameaças fizeram parte da admoestação caso o facto se repetisse.
O Eduardo ficou furioso, indignado por tão grande preconceito num assunto tão insignicante, enorme injustiça duma sociadade hipócrita. Aos ricos e fidalgos, estes, ainda que falidos, tudo era permitido. Podiam fazer filhos em todas as raparigas solteiras, ter quantas amantes quisessem ou ter quantas famílias pudessem manter. Apropriar-se fraudulentamente das poucas propriedades dos mais pobres, explorar o trabalho quase escravo de seus serviçais, viver à tripa-forra sem qualquer trabalho que não fosse cuidar de seus bigodes e aparência, seus pergaminhos bolorentos conquistados sabe-se lá como.
(continua)
M. Félix Igrejas