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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MOBILIÁRIO NUMA CASA DE CAMPINAS (BRASIL)

melgaçodomonteàribeira, 30.07.22

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MOBILIÁRIO E UTENSÍLIOS DOMÉSTICOS DOS LARES CAMPINEIROS  (1850 – 1900)

 

Eliane Morelli Abrahão

 

O luxo e quantidade de móveis nestas casas estavam aquém da aristocracia, mas a preocupação em seguir os mesmos padrões foi observada na disposição das cadeiras e sofás em forma de U, obedecendo a hierarquia patriacal nas salas de estar. Nas salas de jantar em torno da mesa, cadeiras sem braços com assentos de palhinha, quando não apenas cadeiras para os anfitriões e seus convidados sentavam-se em banquinhos ou tamboretes.

O senhor António Gomes Tojal, proprietário de um armarinho e de dezanove imóveis na cidade, vivia modestamente. Natural da freguesia de Chaviães, do concelho de Melgaço do Minho, no Reino de Portugal, nunca se casou, deixou filhos de mulheres diferentes as quais foram beneficiadas em seu testamento. Na sala de estar da casa de morada à rua Ferreira Penteado, número 50, constou:

“uma pequena mobília constando de um sofá, quatro aparadores, duas cadeiras de balanço, doze ditas pequenas, duas ditas de braço, uma mesa de centro por 50$000; um espelho, 40$000; três candelabros, 70$000; um par de escarradeiras de louça e um tapete por 8$000”.

Na sala de jantar encontramos:

uma mesa e dez cadeiras por 40$000; uma talha para água, 8$000; seis quadros na parede, 18$000; um armário pequeno, 30$000.

 

Universidade Estadual de Campinas

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas-IFCH

Departamento de História

 

O PLANALTO DE CASTRO LABOREIRO

melgaçodomonteàribeira, 23.07.22

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 trilho do megalitismo - montes laboreiro

CONJUNTO MEGALÍTICO DO PLANALTO DE CASTRO LABOREIRO

Alda Rodrigues

 

Na chamada raia seca desenvolve-se a Serra do Laboreiro, que começa no vale do rio Trancoso (Galiza) e se estende para Nordeste e para Leste – pelos concelhos de Padrenda, Quintela de Leirado, Verea, Lobeira e Entrimo, na Galiza, e o concelho de Melgaço, em Portugal. Esta serra forma um altiplano, o Planalto de Castro Laboreiro, que se começa a delinear nos concelhos galegos de Verea e Lobeira, mas que se desenvolve, essencialmente, na freguesia de Castro Laboreiro. Neste, desenvolve-se um conjunto de monumentos pré-históricos, em vias de classificação, que serviu de palco à produção da curta-metragem Raízes, de Carlos Ruíz, realizada em 2009. Trata-se de uma representação alegórica da vida e da morte numa comunidade Neolítica.

O cenário onde se implanta este conjunto, inserido no Parque Nacional Peneda-Gerês (PNPG), apresenta uma topografia de natureza suave e é recortado por pequenas linhas de água e por várias nascentes, É também aqui que nasce o rio Laboreiro, que atravessa o altiplano, aproximadamente no sentido Este – Oeste.

Este conjunto de monumentos pré-históricos é o mais setentrional do país e o que se encontra a cotas mais elevadas (Jorge et al. 1997). Desenvolve-se na Galiza e, maioritariamente, em Portugal. Constituí um marco da primeira arquitetura monumental, de um período onde, tal como refere F. C. Boado (1999), se inicia um processo crescente de “domesticação” da envolvente, que não é apenas a expressão de uma nova economia ou aparato tecnológico mas, também, de uma nova relação da sociedade com a natureza, caracterizada por uma atitude que se espressa na sua transformação sistemática e progressiva.

Trata-se de um conjunto importantíssimo quer pela dimensão quer pela diversidade de estruturas (motivada, por outros fatores, pela sua longevidade cronológica) quer, ainda, pela multiplicidade de localizações topográficas.

É ainda relevante o bom estado de conservação dos monumentos e da paisagem envolvente “…belíssima, erma de ruídos e de outros elementos poluidores, procurada por veraneantes que gostam de andar a pé pela montanha, e onde ainda se pode ouvir o silêncio” (Jorge 2003: 109).

Os trabalhos de investigação e valorização patrimonial desta necrópole megalítica datam de 1978, ano em que a Unidade de Arqueologia da Universidade do Minho realizou ali um primeiro levantamento arqueológico, em parceria com o extinto Serviço Regional de Arqueologia da Zona Norte, sob a orientação de Francisco Sande Lemos. Este trabalho contou com o apoio de António Martinho Baptista, então arqueólogo do PNPG. Em 1992, e no âmbito do projeto “Estudo do Conjunto Megalítico do Planalto de Castro Laboreiro”, desenvolvido por Vítor Oliveira Jorge, Susana Oliveira Jorge, Eduardo Jorge Lopes da Silva e António Marinho Baptista verificaram-se escavações do núcleo megalítico do Alto da Portela do Pau. Deste estudo viriam a resultar diversas publicações (Jorge et al. 1995, 1997; Baptista 1997, entre outros).

A partir de 2006, a equipa de arqueologia do PNPG, coordenada por Henrique Regalo, dirigiu esforços para aprofundar o conhecimento da área, tendo realizado um levantamento georreferenciado do conjunto megalítico, com vista à revisão do Plano de Ordenamento do Parque Nacional. Foram então, identificados 66 monumentos megalíticos no território português, dispersos por uma área aproximada de 50 km2. Alguns deles encontram-se isolados, mas a maioria está organizada em grupos (definidos pelo critério da proximidade geográfica).

Tendo em conta os resultados dos vários trabalhos desenvolvidos neste sítio, sobretudo das escavações arqueológicas no Alto da Portela do Pau podemos afirmar que a humanização do planalto de Castro Laboreiro se encontra atestada desde o Neolítico Médio/Final, mais precisamente  desde os finais do V milénio AC (datas calibradas), momento em que foi construída a Mamoa 3 daquele grupo (Jorge et al. 1997). Trata-se de um monumento com uma câmara funerária apenas definida por um anel constituído por pequenos blocos de pedra. Em termos de espólio, o único resto de artefacto cerâmico digno de nota encontrado na área deste monumento é um fragmento da pança de um vaso campaniforme, achado fortuitamento à superfície (Jorge et al. 1997:86).

Na primeira metade do IV milénio AC ergue-se, neste lugar, a Mamoa 2 do Alto da Portela do Pau, um grande monumento com câmara aberta, virada para nascente de planta poligonal que ostenta motivos gravados nos seus esteios e alguns ténues vestígios de pintura. Os motivos são, essencialmente, geométricos (zigzagues e ondulados), dispostos verticalmente, mas também apareceram outros motivos simbólicos, como antropomorfos e círculos concêntricos (Jorge et al. 1997, Baptista 1997). Neste monumento as práticas funerárias implicaram o depósito de uma possível “estatueta” antropormórfica, de vários percutores em quartzo, de uma ponta de seta, entre outros. Este imóvel foi objeto de trabalhos de conservação em 2011.

Nesta área também foi intervencionada a Mota Grande, já em território galego. É um monumento de grandes dimensões, com câmara de planta poligonal e com gravuras sobre os seus esteios, onde se destaca uma representação do tipo “idoliforme”, em baixo-relevo, rodeada por figuras meândricas (Baptista 1997). Nas suas imediações apareceu um menir com aproximadamente 1,90 m de altura máxima e 0,70 m de largura máxima, que ainda jaz no solo, a cerca de 20 metros para sudoeste da Mota Grande.

Durante o Calcolítico o Planalto de Castro Laboreiro continuou a ser frequentado. Disso é prova a reutilização da Mamoa 1 do Alto da Portela do Pau (Jorge et al. 1997), verificada através da deposição de, pelo menos, três vasos campaniformes (Jorge et al. 1997).

No planalto, perto das mamoas de Porcoito e do Alto dos Piornais a 2,3 km do Alto da Portela do Pau para sudoeste, existe ainda um santuário rupestre de arte esquemática que terá sido usado desde o Neolítico até à Idade do Ferro/Romanização (Bettencourt & Rodrigues, neste vol.).

O grupo do Alto da Portela do Pau, será pois, o mais interessante em termos de visitação quer pelo que sobre ele se sabe em termos científico quer por ser acessível através de um percurso pedestre que se inicia na Branda do Rodeiro. Este percurso está marcado no terreno e as informações sobre o mesmo podem ser obtidas no Núcleo Museológico de Castro Laboreiro; no Centro de Informação de Castro Laboreiro; na Porta do Parque Nacional em Lamas de Mouro e na ADERE-PG (Associação de Desenvolvimento das Regiões do Parque Nacional da Peneda-Gêres).

 

TERRITÓRIOS DA PRÉ-HISTÓRIA EM PORTUGAL

DIR.LUIZ OOSTTERBEEK

 

A PRÉ-HISTÓRIA DO NOROESTE PORTUGUÊS

 

Ana M. S. Bettencourt

 

 

A GUERRA EM PORTUGAL NOS FINAIS DA IDADE MÉDIA

melgaçodomonteàribeira, 16.07.22

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A GUERRA EM PORTUGAL

 

O autor da «Crónica dos Sete Reis» (redigida nos inícios do século XV) não viu qualquer inconveniente em integrá-las (as bastidas) na descrição que fez do cerco e tomada de Silves por D. Sancho I (em 1189) ou do cerco de Alcácer do Sal pelos Cruzados (em 1217). É, pois, com naturalidade que reconhecemos a sua presença em várias das operações de cerco de maior envergadura relatadas por Fernão Lopes como tendo tido lugar em Portugal nas últimas décadas de Trezentos; designadamente em Guimarães (no sítio de 1385), em Chaves (no ano seguinte) e em Melgaço (1388). Ao descrever este último assédio, o cronista brinda-nos, aliás, com uma notável descrição do aspecto e envergadura destas impressionantes máquinas de guerra:

«(…) Em esto nam quedauão de deribar madeira e acarretal-la que el-Rey mandaua trazer pera fazer duas escallas e huma bastida, pera mouer todo juntamente e pousar sobre o muro. E como foy laurada, fezeram as rodas do carro pera a bastida; em que auya em grosso per testa em dous palmos, e de roda e roda do carro em ancho treze colados, e em alto, des homde se começaua per çima dos carros, avia treze barças e mea. E em ella avya tres sobrados, pera hirem homeens darmas e beesteiros, juntos ou apartados como vyssem que conpria; o qual sobrado primeiro hya madeirado de pontões bem grossos e estrados de bastos canyços, pera amdarem per cima; e auya derador cemto e xxxvj. Pontões. E a parte de tras ficaua aberta, em que hião escadas dalçapam, per que aviam de subir. Per esta guyssa o segumdo sobrado, que avya derador cemto e xxiiij. Pontões, e o terçeiro cento e xxx., e escadas dalçapaão de huum ao outro. E em çima deste sobrado outro pequeno com cento e xxviij.º meyos pontões derador, em que hiam tres mjl pedras de maão, que mamdaram apanhar aas regateiras; e no segundo sobrado xv. trebolhas gramdes, cheas de vinagre pera deytar ao fogo se lho lançassem. E esta bastida leuaua diante seis gramdes canyços, forados da carqueya, e xxiiij. Coyros de bois verdes, pregados sobre ella por goarda do fogo e dos troons.».

Esta descrição de Fernão Lopes, para além de nos dar uma noção muito exacta da configuração das «bastidas» utilizadas na poliorcética portuguesa dos finais do século XIV, permite-nos também perceber que a utilização destas máquinas de guerra, isto é, a sua aproximação aos muros da praça sitiada, era feita em conjugação com as escadas a que anteriormente nos referimos. Essa abordagem conjunta devia imprimir ao assédio uma tonalidade bastante espectacular; em Melgaço, o monarca mandou até buscar a rainha, para que ela pudesse presenciar o «dia do combato», o qual se desenrolou da seguinte forma: (…) Mamdou el-Rey que abalasse a bastida com os seus corregimentos contra a villa, como tinhaão hordenado; e moueo com força de gente, pero foy bem dezoyto barças; desy moueo huma alla, e depois a outra, e esteueram ambas de fronte do muro arredada huma da outra. E tiraran-lhe sete troons, que lhe não fezeram dapno. Depois moueram outra vez e foy bem rijamente; e chegou-sse tanto a villa que punhaão huum pee no muro dentro e outro na escalla. Sobio muyta companha e o Pryol primeyro que todos; e mandoe el-Rey que tirasem afora. (…) Entam se fez prestes pera mandar combater; e mandou dez homeens darmas e besteiros que sobysem no mais alto sobrado, honde hiam as pedras de maão. E moueo todo juntamente as escalas pera poussar e a bastida em que hião os homens darmas e besteiros. E da bastida sayam homens com grossos paaos que acostauaão ao muro; e poseram muytos deles, e ficauam de fumdo enparados. E pero de çima lhe lançauão pedras gramdes e fogo, nam lhes enpeçia nada. E tirauam de fundo alguns cantos, afora outra pedra, de guyssa que os de dentro entemderam que não avia em eles consselho, posto que trabalhassem por se deffemder. E fezeram-no saber a el-Rey que lhes mamdase falar».

 

A GUERRA EM PORTUGAL NOS FINAIS DA IDADE MÉDIA

João Gouveia Monteiro

Editorial Notícias

1ª Edição

Novembro 1998

pp. 349, 350

CEM ANOS DE RETALHOS DE UMA FAMÍLIA 1852-1952 V

melgaçodomonteàribeira, 09.07.22

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CAPÍTULO V

 

A Conceição Costa, mulher do Félix, passou os tormentos da vida para parir os dezoito e criar os dez que sobreviveram, com altos e baixos financeiros. É certo que os maiorzinhos ajudavam a cuidar dos menores deixando-lhe algum tempo para amanhar a horta, e ir e vir do moinho com os foles de milho e farinha à cabeça. Às vezes o cansaço era tanto que naquele vai e vem, já de noite, tropeçava e caía derramando o conteúdo do fole. Jurava a pés juntos que fora empurrada pelas feiticeiras. Esses personagens lendários, bruxas e feiticeiras, eram, na época, parte integrante da cultura daquele povo a quem se atribuía todos os factos inusitados e inexplicáveis. Havia feiticeiras para todos os gostos. As brincalhonas, as malvadas que se comprasiam as projudicar e as agourentar que pressagiavam eventos catastróficos ou a próxima morte de alguma pessoa.

A Conceição era uma dessas criaturas que acreditava piamente na existência do sobrenatural. Mais tarde, viúva e idosa sujeita a contracções musculares, afirmava que durante a noite o falecido marido lhe pusera as mãos nas costas, braços ou cabeça.

À medida que os filhos cresciam novos sarilhos sobrevinham. As filhas, quando ganhavam corpo de mulher o que acontecia bem cedo, mulheres bonitas e bem feitas, produto apurado de Godos e Celtiberos, tornavam-se a gula de todos os rapazes das redondezas.

A Maria Josena, a mais velha das raparigas, engraçou-se e deixou-se engraçar prlo Luiz Garcia, rapaz bem parecido, do lugar, dinâmico e sonhador. Para reparar a excitação juvenil que resultou em gravidez, o Luiz, meio contra gosto acabou casando com a namorada. Ao primeiro filho, Artur, seguiu-se o Roberto. A vida sem perspectivas do lugar e as notícias dos que se abalavam mexia com a cabeça de todos os jovens. O Luiz e a Maria Josena também almejaram buscar melhor vida. Ao final de muita lamúria a mãe Conceição com a acordância do Félix, concordou em ficar com as crianças. De resto já se convencera que a sua sina era cuidar de crianças, suas, das filhas e quem sabe de quem mais. A Josena e o Luiz emigraram para o estrangeiro. Houve boatos, muito tempo depois que teriam ido para a África. O certo é que não mais aconteceu contacto. O Artur e o Roberto fizeram-se homens de bem ao lado da avó e como todos debandaram para longe. O Artur ficou no país e mais tarde, já com família, voltou e radicou-se na terra. O Roberto foi para a África dando notícias da família que construiu.

O Augusto do Félix, em Belém do Pará, ganhara a amizade e confiança do patrão de quem passara até a ser confidente. Era tanta a confiança que o proprietário da alfaiataria Portas de São Miguel querendo proporcionar uma viagem de recreio a uma das amantes, incumbiu o Augusto de acompanhá-la para dar uma versão de que era este o namorado daquela mulher.

Foi assim que, quatro anos após a sua chegada ao Brasil o Francisco Augusto regressou a Portugal como pagem da concubina do seu patrão, viagem paga e alguns meses de férias.

Depois de se desembaraçar da amante do chefe o Augusto rumou para a sua terra. Chegou a Melgaço quase de surpresa. Enviara um telegrama que chegou dias antes.

A euforia da família foi enorme especialmente de sua mãe Conceição, que, via naquela visita após tão pouco tempo de permanência nas terras do Brasil, pronúncio de furtúnio temporão, quem sabe a sorte extraordinária que costuma brindar uns poucos que nascem com o trazeiro virado para a lua não beneficiou seu filho? Se bem que ela não se lembrava seu filho ter nascido naquela posição.

Chegou o Augusto como autêntico brasileiro, a carácter. Fato branco impecável no corte mas empoeirado pela viagem terrestre no comboio e nas carroças desde o porto do desembarque até àquelas lonjuras, na serra.

O chapéu panamá na cabeça e a bengala encastoada de prata davam o toque de requinte indispensável. Quando o carro de burros que fazia a carreira de Valença apontou na Loja Nova, os rapazotes que por ali costumavam vagabundear na espectativa de carregar alguns pacotes ou malas de possíveis viajantes, reconheceram o Augusto do Félix, largando-se em desabalada, anunciando a boa nova ao povo da terra, uns, outros foram dar a notícia à mãe, a tia Conceição Félix que, mesmo anoitecendo ainda se achava ali perto, no depósito de milho, ramo de negócio que mantinha de sociedade com a Dona Ludovina da Loja Nova, e ainda outros rapazes fazendo questão de carregar a bagagem do Augusto, duas malas e um grande baú de porão, cartão de visita anunciando luxo e abastança. A mãe correu a abraçar o filho e de relance não deixou de reparar no imponente baú que lhe suscitou a confirmação da boa sorte do filho. Ao mesmo tempo ocorreu-lhe um pensamento nefasto: outros haviam trazido bonitas e pesadas malas que, mais tarde, soubera-se estarem cheias de objectos sem valor e pedras, maneira de ser bem recebidos aparentando riqueza. Aquele baú do Augusto vinha recheado de fortuna diferente que teve utilidade por anos a fio na mão dos filhos, a fortuna da cultura. A bonita arca estava recheada de livros e revistas.

O pouco dinheiro que o Augusto trazia dava para fazer a figuraça que pretendia e a tradição exigia uma vez que não era sua intenção prolongar a estadia, de acordo com o seu patrão.

No desfile desde a Loja Nova até sua casa no Carvalho, dentro da vila, Augusto, sua mãe, os carregadores e outros parentes que acorreram ao anúncio dos arautos que tinham espalhado a notícia, foram festejados pela população que morava no trajecto e outros que por curiosidade vieram apreciar a novidade. Na verdade o Augusto do Félix despertava a atenção. Trajando a rigor na concepção do estilo brasileiro, desde os sapatos de verniz brancos e pretos, até ao chapéu, gravata de laço e bengala, espelho, bonitão, esbanjando a juventude dos seus vinte e dois anos, era realmente uma atração.

                                                                                   M. Félix Igrejas

CEM ANOS DE RETALHOS DE UMA FAMÍLIA 1852-1952 IV

melgaçodomonteàribeira, 02.07.22

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CAPÍTULO IV

 

O Ismael embarcara para o Brasil com as despedidas formais e promessa de casamento por procuração logo que a vida lhe sorrisse. As famílias resignaram-se àquele destino comum. A Jelcemina não compareceu à despedida. Desde que a viagem fora anunciada e confirmada ficara arredia e triste. Passou o primeiro, o segundo mês e o Ismael não mandou notícias. Nunca mais deu sinais de vida, pelo menos para a namorada. Para a família, sim. A rapariga, taciturna, pouco comia, emagreceu, perdeu a cor trigueira, perdeu o gosto de tudo. O desgosto da partida do seu derriço tirou-lhe a vontade de viver. Os Violas eximiam-se de qualquer responsabilidade. Amargurada a Jelcemina definhava dia a dia. Fisicamente vulnerável achou de tomar banho na poça do campo do Chãos. O inverno se avizinhava, a água estava excessivamente fria, quase gelada. Naquele organismo enfraquecido sobreveio uma pneumonia. Talvez fosse aquilo que ela buscava. Não resistiu, faleceu. As más línguas insinuavam que havia algo mais de que ela se envergonhasse.

Os momentos finais da moça foram terrívelmente dolorosos. No auge da febre debatia-se e gritava pelo seu Ismael. Uma visão passou pela sua imaginação que em voz sumida transmitia aos que, chorosos, a rodeavam. Dizia ver o Ismael muito pálido mas bonito, vestido de branco, rodeado de flores e velas.

A partir do falecimento da Jelcemina a animosidade entre Félix e Violas cresceu, com acusações de uns e desculpas de outros. Do Ismael nada se soube, apenas que estava lá para o Pará.

O Carlinhos, da ilustre família Barros Ferreira, conceituada e abastada, foi transferido para a sua terra chefiando a secção dos correios. Físicamente era uma figura grotesca. Baixote, cabeça grande, desproporcional, corcunda, usava grandes bigodes retorcidos e calvice acentuada nas têmporas. Contudo, era pessoa educada, afável, tornando-se simpático. Solteirão, já entrado em anos, precisou de alguém que lhe tomasse conta da casa, espécie de governanta. A sua família morava ali na vila, na casa perto da igreja conhecida como o casa da torre, mas ele desejava continuar independente. Foi-lhe indicada, pelos parentes, uma rapariga desembaraçada, capaz de preencher o lugar. Era a Esmeralda, a sexta filha do Félix e Conceição.

Aos filhos homens o Félix ensinou a sua profissão. O mais novo, Eduardo Augusto, aborrecia bastante os pais com seu génio irrequieto e revoltoso. Não aceitava e sempre que podia transgredia as normas estabelecidas pela sociedade do lugar. As pessoas humildes, os plebeus, obrigatoriamente tinham de andar de cabeça coberta em todos os lugares públicos. Boné, gorro, garruço, boina, chapéu os que o herdaram da família, alguma coisa teria de cobrir-lhe a cabeça. Os fidalgos e os burgueses, “pessoas de bem”, tinham o privilégio de andar de cabeça descoberta sempre que isso lhes aprouvesse. A maneira de mostrar respeito aos mais bem situados na vida, ou seja, a forma dos humildes se declararem subservientes era, ao cruzar com aquelas pessoas gradas, tirarem o chapéu ou o que lhes cobrisse a cabeça numa respeitosa e submissa reverência. Quem não cumprisse tal código de ética corria o risco de séria admoestação ou castigo. Foi o que aconteceu ao Eduardo do Félix. Garotão senhor do seu nariz detestava as imposições sociais descabidas. Bonitão achava de poder mostrar-se como muito bem entendesse. Um dia de domingo teve a coragem de andar passeando pela vila com colegas, de cabeça descoberta. Aquilo causou admiração e constrangimento nas pessoas mais velhas e repulsa naqueles que teriam de ser reverenciados. O acontecimento chegou aos ouvidos do Félix Igrejas que mandou chamar o filho por um irmão e chegando em casa ouviu o rapaz um sermão em regra. Ameaças fizeram parte da admoestação caso o facto se repetisse.

O Eduardo ficou furioso, indignado por tão grande preconceito num assunto tão insignicante, enorme injustiça duma sociadade hipócrita. Aos ricos e fidalgos, estes, ainda que falidos, tudo era permitido. Podiam fazer filhos em todas as raparigas solteiras, ter quantas amantes quisessem ou ter quantas famílias pudessem manter. Apropriar-se fraudulentamente das poucas propriedades dos mais pobres, explorar o trabalho quase escravo de seus serviçais, viver à tripa-forra sem qualquer trabalho que não fosse cuidar de seus bigodes e aparência, seus pergaminhos bolorentos conquistados sabe-se lá como.

 

(continua)

                                                                                               M. Félix Igrejas