CEM ANOS DE RETALHOS DE UMA FAMÍLIA 1852-1952 II
CAPÍTULO II
A Jelcemina, terceira dos dezoito filhos de Félix Igrejas e da Conceição Costa, era uma moça trigueira, desembaraçada, bem feita de corpo e bonita, como de resto todas as raparigas daquela família. Não lhe faltavam namorados. Estava por surgir o seu ái-jesus. Este apareceu na figura do Ismael, um guapo rapaz, vizinho quase porta com porta, membro da família Sousa mais conhecida pela alcunha de Violas.
O namoro desenvolveu-se naturalmente como todos os namoros da juventude recatada e super-vigiada da época. As famílias embalaram aquele namoro em que faziam gosto.
Com o tempo a vigilância abrandou concedendo maior liberdade aos namorados. Já se falava em futuro casamento.
Surgiu, então, o fantasma que assombrava a todos que pretendiam constituir família: uma vida monótona, sacrificada, beirando a mizerabilidade. O futuro risonho estava do outro lado do mar. O Ismael, como todos os rapazes instruídos, não aceitava resignar-se à mesma vida das gerações anteriores. Sabia dos sacrifícios, a falta de recursos com que lutaram seus pais para alimentar as inúmeras bocas que Deus lhes destinara. Pior ainda, outros chefes de família que emigraram na ânsia de ir buscar sustento para os seus, não mais voltaram nem mandaram recursos. Constava que tinham constituída nova família lá nas lonjuras e na terra, a coitada da mulher fazia das tripas coração para que não faltasse uma côdea de pão à baca dos filhos. Essa côdea era conseguida entre parentes e vizinhos como esmola. Era por isso que as famílias preferiam que emigrassem solteiros.
O Félix Igrejas permitiu e ajudou seu filho Francisco Augusto a embarcar nessa aventura. E havia um detalhe bastante intrincado que ajudou na decisão. O rapaz estava com 16 anos, logo teria de se decidir sobre a nacionalidade que lhe interessava: se portuguesa ou espanhola e a consequente prestação de serviço militar num ou noutro país. É que, em virtude do pai ter sido registado em Espanha, onde, teoricamente nasceu pois foi aí que apareceu, residindo, embora, em Melgaço, Portugal, ainda não tinha requerido a nacionalidade portuguesa, o que aconteceu mais tarde; os filhos, pela lei vigente na época, só na maior idade podiam optar pela nacionalidade que lhe conviesse: se a de onde nascera ou a do pai. Na idade própria assumia a nacionalidade portuguesa como o resto da família por que o pai já fizera o mesmo.
Foi Francisco Augusto embarcar em Vigo, cidade portuária da Galiza rumo a Belém do Pará, cheio de ilusões e qualificação profissional. O pai ensinara-lhe a profissão de alfaiate de que era mestre, ofício aprendido no estabelecimento onde fora criado. Corria o ano de 1896.
Melgaço era um vilarejo bastante agradável para se viver quando se tinha recursos. Os fidalgos detentores de propriedades e os comerciantes, burgueses, levavam vida regalada. O povo, humílimo e subserviente considerava-se feliz por ter uma malga de caldo e um naco de pão de milho ou centeio ao fim do dia para sua família. A não ser uns poucos artesãos os demais dedicavam-se à agricultura cultivando as terras daqueles senhores, de quem recebiam uma mínima percentagem da colheita por altura do São Miguel. Valia ao povo as galinhas e os porcos. Cada família mantinha, pelo menos um porquinho na corte que geralmente era o térreo da sua humilde casa ou um anexo no quintal, animal que durante o ano engordavam com restos de hortaliças, legumes especialmente abóboras, landras e farelo de milho. No início era o suíno abatido, salgado e defumado para durar o ano inteiro. As partes mais nobres do animal eram consumidas em datas festivas.
Uma fortaleza medieval em ruínas donde sobressaía a torre de menagem ainda intacta, restícios de guarda avançada da nacionalidade, davam certa imponência ao lugar. O desmantelar das muralhas deveu-se aos da classe dominante que aproveitavam os grandes blocos de granito para construir ou melhorar os seus casarões. E por ser um lugar de magníficas paisagens, de ares salutares, povo ordeiro, era propício a retemperamento da saúde de fidalgos doutras terras que se hospedavam, por temporadas, em casa de parentes ou amigos.
Na casa solarenga do Dr. Vasconcelos estava hospedada uma jovem fidalga da cidade de Barcelos que por linhagem vinha a ser condessa. Formosa de corpo e bonita de rosto fora para retemperar-se dum princípio de anemia. Ao fim de algumas semanas voltaram-lhe as cores da saúde e a vivacidade da juventude que viraram a cabeça do Dr. João, jovem médico recém- formado, filho da casa. A convivência e o ardor da juventude fez aqueles jovens se enlearem. Uma gravidez indesejada veio transtornar certos projectos de vida. A moça fidalga era compremetida com um mancebo de alta linhagem. Compromisso de honra que não poderia ser desfeito por vários factores, inclusivé por representar alto interesse pecuniário e político. As famílias envolvidas no acontecido, para evitar o escândalo decidiram pelo processo usado na época em tais situações.
A jovem continuou em Melgaço o tempo suficiente para a criança nascer, ao nobre pretendente foi dito que ela contraíra doença contagiosa que exigia isolamento sendo-lhe proibida a visita.
(continua)
M. Félix Igrejas