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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

CEM ANOS DE RETALHOS DE UMA FAMÍLIA 1852-1952 III

melgaçodomonteàribeira, 25.06.22

817 b manuel igrejas, arte e cultura melgacense no

CAPÍTULO III

 

O Augusto do Félix teve uma viagem bonançosa e alegre. A quase totalidade dos passageiros daquele vapor inglês eram jovens portugueses e espanhóis a caminho da fortuna. Nos vinte e oito dias da travessia outra coisa não fizeram que projectar mirabolantes sucessos. Tudo era festa, o mar imenso com os enjoos do balanço, a precaridade das acomodações amontoados em cabines exíguas e neda higiénicas, não obstava para abater a animação da próxima prosperidade.

Muitos daqueles jovens nunca tinham visto o mar e as surpresas que diáriamente lhes reservava. Teve um dia que apareceu coalhando de grandes bolhas coloridas quais imensas bolas de sabão, tão grandes que chegavam à amurada do navio. O comandante avisou que não tentassem estourá-las ou pôr-lhe as mãos, podiam estar cheias de gás venenoso.

Chegando a Belém não foi difícil ao Augusto arranjar colocação. Exibindo suas qualidades profissionais logo foi contratado como oficial na Alfaiataria Portas de São Miguel, das mais conceituadas da cidade. Belém do Pará era o Eldorado da época. Vivia-se o esplendor do ciclo da borracha. Tudo era grandiosidade na fulgurante metrópole. Companhias de ópera, estrangeiras, famosas, acorriam a exibir-se. Em pouco tempo o Augusto tornou-se contra-mestre da alfaiataria e amigo do proprietário. Levava uma vida de fidalgo fora das horas de trabalho, motivo por que, embora ganhasse razoávelmente bem, andava sempre atrapalhado de finanças. Não perdia estreia de temporada teatral, de bailes e saraus e outras manifestações artísticas, culturais e desportivas. Era destacado na roda de amigos onde fazia tudo para sobressair. Um dia, em plena festa de casamento de um amigo, influenciado pelos vapores do champanhe e outras bebidas achou de fazer-se engraçado: meteu-se por baixo da grande mesa onde estavam as iguarias e levantando-a com as costas derrubou-a espalhando pelo chão tudo que estava em cima. Foi um grande alvoroço que arrancou gargalhadas dos mais eufóricos e custou ao engraçadinho seis meses de salário.

O fruto proibido do jovem Dr. Vasconcelos e da condessa Constança nasceu em meio a jurado segredo da parteira e da meia dúzia de pessoas intímas. Na noite do nascimento um serviçal da máxima confiança levou a criança com riquíssimo enxoval, jóias e dinheiro, por caminhos escusos, Galiza a dentro até ao convento de Orense, cidade espanhola bastante retirada de Melgaço. A trouxa com o recém-nascido e pertences, foi posta na Roda do Mosteiro e tocada a sineta que avisava de mais uma prevericação da nobreza.

Com a complacência da igreja fora instituída essa forma de orfanatos. As crianças rejeitadas eram encaminhadas a essas instituições onde recebiam criação e educação esmeradas. As criaturas instruídas nesses internatos ao completar a maioridade saíam preparadas para enfrentar a vida.

O recém exposto na roda oriundo de Melgaço foi acolhido com o habitual carinho e baptizado para ser mais um cristão. Foi-lhe dado o nome de Félix que quer dizer feliz e o sobrenome que a instituição dava a todos os enjeitados, Iglesias, que quer dizer filho da igreja. Ficou sendo então, oficial e cristãmente Félix Iglesias que mais tarde, quando requereu a nacionalidade portuguesa passou a ser Félix Igrejas.

Educado e instruído segundo os cânones da  instituição ensinaram-lhe o ofício de alfaiate de que se tornou mestre.

Os desentendimentos entre os Félix e os Violas sofreram um estremecimento quando constou que a Amália do Félix estava namorando o Ilídio dos Violas. Os membros de lado a lado não queriam acreditar. Os Félix viram naquilo um grande insulto, uma vilania. Iria-se repetir a tragédia da Jelcemina? Cruz, credo, Deus nos livre de tal desgraça.

Era novamente domingo. Só aos domingos tinham tempo para se envolverem em zaragata. Naquele domingo a discussão e os empurrões estavam acontecendo nas portas da vila, nos fojos, perto da fonte da galinha. Enquanto os contendores se destratavam e ameaçavam a Amália e o Ilídio escondidos entre os arbustos da Feira Nova, onde mais tarde foi construído o edifício da Câmara, se apalpavam e faziam juras de amor eterno.

 

(Continua)

                                                            M. Félix Igrejas

CEM ANOS DE RETALHOS DE UMA FAMÍLIA 1852-1952 II

melgaçodomonteàribeira, 18.06.22

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CAPÍTULO II

A Jelcemina, terceira dos dezoito filhos de Félix Igrejas e da Conceição Costa, era uma moça trigueira, desembaraçada, bem feita de corpo e bonita, como de resto todas as raparigas daquela família. Não lhe faltavam namorados. Estava por surgir o seu ái-jesus. Este apareceu na figura do Ismael, um guapo rapaz, vizinho quase porta com porta, membro da família Sousa mais conhecida pela alcunha de Violas.

O namoro desenvolveu-se naturalmente como todos os namoros da juventude recatada e super-vigiada da época. As famílias embalaram aquele namoro em que faziam gosto.

Com o tempo a vigilância abrandou concedendo maior liberdade aos namorados. Já se falava em futuro casamento.

Surgiu, então, o fantasma que assombrava a todos que pretendiam constituir família: uma vida monótona, sacrificada, beirando a mizerabilidade. O futuro risonho estava do outro lado do mar. O Ismael, como todos os rapazes instruídos, não aceitava resignar-se à mesma vida das gerações anteriores. Sabia dos sacrifícios, a falta de recursos com que lutaram seus pais para alimentar as inúmeras bocas que Deus lhes destinara. Pior ainda, outros chefes de família que emigraram na ânsia de ir buscar sustento para os seus, não mais voltaram nem mandaram recursos. Constava que tinham constituída nova família lá nas lonjuras e na terra, a coitada da mulher fazia das tripas coração para que não faltasse uma côdea de pão à baca dos filhos. Essa côdea era conseguida entre parentes e vizinhos como esmola. Era por isso que as famílias preferiam que emigrassem solteiros.

O Félix Igrejas permitiu e ajudou seu filho Francisco Augusto a embarcar nessa aventura. E havia um detalhe bastante intrincado que ajudou na decisão. O rapaz estava com 16 anos, logo teria de se decidir sobre a nacionalidade que lhe interessava: se portuguesa ou espanhola e a consequente prestação de serviço militar num ou noutro país. É que, em virtude do pai ter sido registado em Espanha, onde, teoricamente nasceu pois foi aí que apareceu, residindo, embora, em Melgaço, Portugal, ainda não tinha requerido a nacionalidade portuguesa, o que aconteceu mais tarde; os filhos, pela lei vigente na época, só na maior idade podiam optar pela nacionalidade que lhe conviesse: se a de onde nascera ou a do pai. Na idade própria assumia a nacionalidade portuguesa como o resto da família por que o pai já fizera o mesmo.

Foi Francisco Augusto embarcar em Vigo, cidade portuária da Galiza rumo a Belém do Pará, cheio de ilusões e qualificação profissional. O pai ensinara-lhe a profissão de alfaiate de que era mestre, ofício aprendido no estabelecimento onde fora criado. Corria o ano de 1896.

Melgaço era um vilarejo bastante agradável para se viver quando se tinha recursos. Os fidalgos detentores de propriedades e os comerciantes, burgueses, levavam vida regalada. O povo, humílimo e subserviente considerava-se feliz por ter uma malga de caldo e um naco de pão de milho ou centeio ao fim do dia para sua família. A não ser uns poucos artesãos os demais dedicavam-se à agricultura cultivando as terras daqueles senhores, de quem recebiam uma mínima percentagem da colheita por altura do São Miguel. Valia ao povo as galinhas e os porcos. Cada família mantinha, pelo menos um porquinho na corte que geralmente era o térreo da sua humilde casa ou um anexo no quintal, animal que durante o ano engordavam com restos de hortaliças, legumes especialmente abóboras, landras e farelo de milho. No início era o suíno abatido, salgado e defumado para durar o ano inteiro. As partes mais nobres do animal eram consumidas em datas festivas.

Uma fortaleza medieval em ruínas donde sobressaía a torre de menagem ainda intacta, restícios de guarda avançada da nacionalidade, davam certa imponência ao lugar. O desmantelar das muralhas deveu-se aos da classe dominante que aproveitavam os grandes blocos de granito para construir ou melhorar os seus casarões. E por ser um lugar de magníficas paisagens, de ares salutares, povo ordeiro, era propício a retemperamento da saúde de fidalgos doutras terras que se hospedavam, por temporadas, em casa de parentes ou amigos.

Na casa solarenga do Dr. Vasconcelos estava hospedada uma jovem fidalga da cidade de Barcelos que por linhagem vinha a ser condessa. Formosa de corpo e bonita de rosto fora para retemperar-se dum princípio de anemia. Ao fim de algumas semanas voltaram-lhe as cores da saúde e a vivacidade da juventude que viraram a cabeça do Dr. João, jovem médico recém- formado, filho da casa. A convivência e o ardor da juventude fez aqueles jovens se enlearem. Uma gravidez indesejada veio transtornar certos projectos de vida. A moça fidalga era compremetida com um mancebo de alta linhagem. Compromisso de honra que não poderia ser desfeito por vários factores, inclusivé por representar alto interesse pecuniário e político. As famílias envolvidas no acontecido, para evitar o escândalo decidiram pelo processo usado na época em tais situações.

A jovem continuou em Melgaço o tempo suficiente para a criança nascer, ao nobre pretendente foi dito que ela contraíra doença contagiosa que exigia isolamento sendo-lhe proibida a visita.

 

(continua)

                                                                                    M. Félix Igrejas

CEM ANOS DE RETALHOS DE UMA FAMÍLIA 1852-1952 I

melgaçodomonteàribeira, 11.06.22

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félix igrejas e conceição costas

 

CEM ANOS DE RETALHOS DUMA FAMÍLIA

1852 – 1952

 

CAPÍTULO I

 

Era domingo. As criaturas que saíam da missa do dia, espantadas, entreolhavam-se inquirido sobre o alarido que vinha da rua de Baixo. Alguém, vindo daquele lado informou que era mais uma zaragata entre os Violas e os Félix. Maioria das pessoas deram de ombros e foram à vida, outros, os que tinham amizade ou parentesco com os contendores, acorreram ao largo da Misericórdia onde acontecia a balbúrdia.

Com a chegada dos espectadores a rusga foi arrefecendo e os contendores deixaram para lá e debandaram.

Discussões entre os membros das duas famílias vinham de algum tempo após um infausto acontecimento. As consequências dos encontros não passava das ofensas verbais e um ou outro empurrão. Apesar de toda a animosidade eram criaturas tementes a Deus e com a necessária dignidade para evitar consequências desastrosas. Afinal, eram gente da mesma comunidade que se haviam querido bem até algum tempo atrás. Agora, sempre que membros daquelas famílias se cruzavam o bate-boca era  inevitável.

O Félix Igrejas ficou arreliado com a decisão do filho homem mais velho quando este falou em ir para o Brasil. Era uma sina, todas as famílias da terra tinham um ou mais membros naquelas lonjuras. Era o destino inevitável. Não havia condições de tanta gente se manter numa terra de recursos tão escassos. Agricultura de sobrevivência e os ofícios tradicionais eram os únicos recursos para atender as necessidades dos habitantes. As famílias tinham proles numerosas, as mais pequenas com oito ou dez filhos. Emigrar era a única alternativa para quem aspirava um futuro melhor. E os engajadores oferecendo mirabolantes perspectivas nos Brasis onde se ficava rico do dia para a noite, era só abanar a árvore das patacas. O interesse deles era a comissão que as companhias de navegação lhes ofereciam por cada passageiro engajado. Os candidatos a ricos, geralmente os mais jovens, pediam aos pais e estes empenhavam os parcos haveres que possuíam para custear a passagem. Sabiam que os bens penhorados eram bens perdidos, dificilmente os recuperariam. Dos muitos rapazes que abalaram, poucos remetiam dinheiro que compensasse o sacrifício. Num ou outro natal vinham minguados mil réis que davam para pouco mais que as rabanadas. Sinal que na terra da tal “árvore das patacas” não havia a facilidade apregoada. É bem verdade que de longe algum que já tinha partido há um ror de anos voltava de visita alardeando abastança. Exibiam roupas extravagantes e um linguajar arrevezado decorado durante a viagem, para impressionar os papalvos da terra. Os antigos sabiam muito bem que aquilo era fogo de vista, já tinham feito encenação igual ou parecida. Houve o caso de um “brasileiro” que foi visitar a família após dezenas de anos, com todo o espalhafato da praxe que apenas durou um mês. Os restantes cinco meses que a passagem de vapor lhe permitia, passou-os trabalhando na forja do cunhado para se manter.

Houve, sim, no espaço de cinquenta anos, dois ou três emigrantes que voltaram com considerável fortuna lhes permitindo comprar as propriedades de fidalgos arruinados.

Não obstante os prós e contras, mais contras que a favor, os chefes de família faziam o impossível para proporcionar meios ao seu membro de pagar a passagem. Era um jogo de sorte. Quem sabe seu filho ía ser um daqueles que voltavam ricos?

 

(continua)

                                                       Félix Igrejas

CONTRABANDO DE CAFÉ EM CASTRO LABOREIRO

melgaçodomonteàribeira, 04.06.22

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castreja - 1907

CONTRABANDO EM CASTRO LABOREIRO

 

Comecemos pelo tabaco e com o exemplo de Castro Laboreiro, precisamente para o período dos finais dos anos sessenta e durante toda a década de setenta, época identificada por um movimento intenso em direcção a Espanha.

Transportado para a costa em pequenos barcos, que em autêntica cabotagem, o distribuíam pelo litoral e, em situações particulares, nas próprias margens do rio Minho. Uma vez recolhido nos camiões, que circulavam em vias pouco frequentadas, em terra batida, transpunham Melgaço, para através do vale do Trancoso atingirem Castro Laboreiro, onde as mulas o transportavam a vários sítios da fronteira em direcção a Espanha.

Se o comércio do tabaco adquiriu notoriedade, nomeadamente, no planalto castrejo, o movimento de maior impacto teria sido, sem sombra para dúvidas, o relacionado com a transacção do café, cuja importação, desde sempre, foi dificultada pelas autoridades espanholas.

Embora o fluxo fosse intenso e sensivelmente constante, a travessia do limiar político era efectuado, sempre a pé, em pequenas quantidades, pois o cheiro activo que exarava traía o processo mais suis generis utilizado pelo transportador.

Mas, quando na década de sessenta a torrefacção passou a efectuar-se em localidades espanholas, como Ourense, iniciou-se um novo ciclo, em virtude do café em cru, ou seja, não torrificado, não exarar cheiro e, portanto, ser muito mais fácil iludir as autoridades fiscais.

Este facto coincide com o aumento da produção em Angola e a abertura de novos acessos, principalmente em Espanha, pelo que, se por um lado, os “passadores” a título individual proliferaram, por outro, implementaram-se novos esquemas, com o predomínio dos “patrões locais”, que em coordenação com os principais gestores sediados em Lisboa e em Ourense, faziam chegar à fronteira camiões de grande porte carregados com toneladas do produto, que se armazenava, enquanto se aguardava pelos momentos mais oportunos para que grupos de homens, lusos e espanhóis, a pé, fizessem o seu transporte, através da fronteira em direcção ao país vizinho.

O negócio do café envolveu a grande maioria dos limianos de raia, pelo que desde as mulheres e homens galegos e lusos, a título individual, ou, debaixo de ordens do “patrão”, aos donos de tendas, que acompanhavam as suas mulas e os seus homens, quer até aos marcos da fronteira, quer até aos comércios, ou, então, aos bandos de homens oriundos de Xinzo de Limia e Celanova que, durante anos, a pé, transportaram muitos milhares de toneladas, incrementando-se, assim, um fluxo que se iniciava na região de Lisboa, para terminar nas torrefacções espanholas, ou, talvez melhor, no consumidor individual.

 

LIMA INTERNACIONAL: PAISAGENS E ESPAÇOS DE FRONTEIRA

Volume I

Elza Maria Gonçalves Rodrigues de Carvalho

Tese de Doutoramento em Geografia

Ramo de Geografia Humana

Universidade do Minho

Instituto de Ciências Sociais

Julho de 2006