CEM ANOS DE RETALHOS DE UMA FAMÍLIA 1852-1952 III
CAPÍTULO III
O Augusto do Félix teve uma viagem bonançosa e alegre. A quase totalidade dos passageiros daquele vapor inglês eram jovens portugueses e espanhóis a caminho da fortuna. Nos vinte e oito dias da travessia outra coisa não fizeram que projectar mirabolantes sucessos. Tudo era festa, o mar imenso com os enjoos do balanço, a precaridade das acomodações amontoados em cabines exíguas e neda higiénicas, não obstava para abater a animação da próxima prosperidade.
Muitos daqueles jovens nunca tinham visto o mar e as surpresas que diáriamente lhes reservava. Teve um dia que apareceu coalhando de grandes bolhas coloridas quais imensas bolas de sabão, tão grandes que chegavam à amurada do navio. O comandante avisou que não tentassem estourá-las ou pôr-lhe as mãos, podiam estar cheias de gás venenoso.
Chegando a Belém não foi difícil ao Augusto arranjar colocação. Exibindo suas qualidades profissionais logo foi contratado como oficial na Alfaiataria Portas de São Miguel, das mais conceituadas da cidade. Belém do Pará era o Eldorado da época. Vivia-se o esplendor do ciclo da borracha. Tudo era grandiosidade na fulgurante metrópole. Companhias de ópera, estrangeiras, famosas, acorriam a exibir-se. Em pouco tempo o Augusto tornou-se contra-mestre da alfaiataria e amigo do proprietário. Levava uma vida de fidalgo fora das horas de trabalho, motivo por que, embora ganhasse razoávelmente bem, andava sempre atrapalhado de finanças. Não perdia estreia de temporada teatral, de bailes e saraus e outras manifestações artísticas, culturais e desportivas. Era destacado na roda de amigos onde fazia tudo para sobressair. Um dia, em plena festa de casamento de um amigo, influenciado pelos vapores do champanhe e outras bebidas achou de fazer-se engraçado: meteu-se por baixo da grande mesa onde estavam as iguarias e levantando-a com as costas derrubou-a espalhando pelo chão tudo que estava em cima. Foi um grande alvoroço que arrancou gargalhadas dos mais eufóricos e custou ao engraçadinho seis meses de salário.
O fruto proibido do jovem Dr. Vasconcelos e da condessa Constança nasceu em meio a jurado segredo da parteira e da meia dúzia de pessoas intímas. Na noite do nascimento um serviçal da máxima confiança levou a criança com riquíssimo enxoval, jóias e dinheiro, por caminhos escusos, Galiza a dentro até ao convento de Orense, cidade espanhola bastante retirada de Melgaço. A trouxa com o recém-nascido e pertences, foi posta na Roda do Mosteiro e tocada a sineta que avisava de mais uma prevericação da nobreza.
Com a complacência da igreja fora instituída essa forma de orfanatos. As crianças rejeitadas eram encaminhadas a essas instituições onde recebiam criação e educação esmeradas. As criaturas instruídas nesses internatos ao completar a maioridade saíam preparadas para enfrentar a vida.
O recém exposto na roda oriundo de Melgaço foi acolhido com o habitual carinho e baptizado para ser mais um cristão. Foi-lhe dado o nome de Félix que quer dizer feliz e o sobrenome que a instituição dava a todos os enjeitados, Iglesias, que quer dizer filho da igreja. Ficou sendo então, oficial e cristãmente Félix Iglesias que mais tarde, quando requereu a nacionalidade portuguesa passou a ser Félix Igrejas.
Educado e instruído segundo os cânones da instituição ensinaram-lhe o ofício de alfaiate de que se tornou mestre.
Os desentendimentos entre os Félix e os Violas sofreram um estremecimento quando constou que a Amália do Félix estava namorando o Ilídio dos Violas. Os membros de lado a lado não queriam acreditar. Os Félix viram naquilo um grande insulto, uma vilania. Iria-se repetir a tragédia da Jelcemina? Cruz, credo, Deus nos livre de tal desgraça.
Era novamente domingo. Só aos domingos tinham tempo para se envolverem em zaragata. Naquele domingo a discussão e os empurrões estavam acontecendo nas portas da vila, nos fojos, perto da fonte da galinha. Enquanto os contendores se destratavam e ameaçavam a Amália e o Ilídio escondidos entre os arbustos da Feira Nova, onde mais tarde foi construído o edifício da Câmara, se apalpavam e faziam juras de amor eterno.
(Continua)
M. Félix Igrejas