O RAIO DA COBRA
casa do sr. mareco
A caminho do meu moinho, uma cobra negra atravessou o carreiro, escondendo-se, célere, numa tufa de ramalhos de carvalho à minha direita.
O meu pensamento voou para os tempos da minha primeira adolescência, quando jovem aluno da escola primária, hoje ensino básico, regressava da escola do Vido.
Já então, era um ser um tanto solitário, caminhando só, longe dos meus companheiros de escola; eu atirava a minha boina ao ar num movimento de rotação sobre si mesma, que a fez sair do troço de estrada, ainda em construção, e cair sobre uma cobra preta, que bem enroscada em círculo, dormia tranquilamente à sombra de uns arbustos espinhosos.
Claro que o ofídio, subitamente incomodado na sua sesta, com a rapidez do relâmpago, me mordeu no pulso direito, e se precipitou numa fuga salvadora, para longe do intruso, que assim perturbava o seu descanso reparador.
Ainda persegui o réptil à pedrada, mas, mais astuto e rápido do que eu, conseguiu escapulir-se, desaparecendo numa moita de arbustos à beira do rio.
Foi então que ao olhar para o meu pulso, vi que este inchava desmesuradamente, não distinguindo já o pulso da mão.
Muito preocupado, mas sem algum indício de dor, subi rápido a ribanceira da estrada, e chamei pelos companheiros já distantes de algumas centenas de metros.
Constança! Olinda! Uma cobra mordeu-me! Gritei.
A Constança, minha irmã, olhou para trás, riu-se, mas continuou sem ligar nada.
- Lá está o pantomineiro do meu irmão, disse ela; sempre a brincar, a gritar ó lobo, ó lobo.
Como não fui ouvido, voltei a chamar com alguma veemência, talvez mesmo com algum dramatismo: Tança, Olinda, acudam, acudam, uma cobra mordeu-me!
Desta vez, a minha irmã reparou no tom diferente da minha voz, onde passava algo de estranho, e na dúvida, resolveu esperar, e ver o que se passava.
Ao ver o estado do meu pulso, desatou a chorar e a chamar pela sua amiga:
- Oh Linda, olha o meu irmão, ai ai ai… ela vai morrer…Olha!
A Olinda começou também a chorar, seguida da sua irmã, a Otília, e da minha prima Sara. Foi um lindo concerto de choradeira que se apoderou do grupo, que me olhava como um herói trágico, com ar triste e comovedor.
A minha irmã e a Olinda, queriam levar-me de força às costas, e eu bendizia que podia andar, que a cobra ma mordera no pulso, e não no pé, que não tinha dores, mas nada a fazer, tinha de ser transportado às costas, pois podia estar muito doente, e o esforço matava-me; isto, apesar de elas não poderem comigo, de não terem força para o fazer.
Foi então que o meu primo se chegou junto de mim, e com uma voz, mistura de gozo e de inquietação, me sussurrou:
- Oh pá, estás fodido!
A este insulto, libertei-me dos braços das moças, dizendo:
- Não estou nada pá, e mais preocupado do que parecia, corri para casa, ainda distante de algumas centenas de metros.
O meu pai, examinou o pulso, tratou logo de fazer um garrote para não deixar circular o sangue, do local da mordedura para o coração, e disse para a minha irmã, que entretanto chegava a chorar com o grupo das amigas.
- Vai a casa do tio Manuel Mareco, em “Borja-Travessa”, que nos venha buscar, para levar o teu irmão ao médico. Diz-lhe que foi mordido por uma cobra. Nós, uma vez o teu irmão preparado vamos ao vosso encontro, e esperamos no fim da estrada, na ponte de Picotim. Ala, vai numa perna e vem noutra, pois o tempo urge.
A viagem até Melgaço, foi uma revelação de coisas novas. O carro do senhor Manuel Mareco era um buick luxuoso e potente e para mais o único carro da freguesia.
Eu olhava pasmado este monstro a fender o ar, com um assobiar que me encantava; as árvores e as coisas desfilavam vertiginosamente para trás, sentia o coração e as tripas subir para a garganta, sempre que havia uma lacada, ou uma descida súbita.
A minha admiração pelo tio Mareco crescia a olhos vistos, ao ver a mestria com que ele conduzia o automóvel, sem abrandar nas curvas, às vezes com uma só mão! Era um grande homem! Que digo eu, uma espécie de semi-deus, e para mais, era amigo do meu pai!
O meu contacto com Melgaço, deixou-me mudo de espanto e admiração: As casas eram todas bonitas, com as paredes pintadas, havia postes de iluminação pública, e as mulheres eram muito lindas e asseadas, apesar de ser um dia de semana!
De vez em quando passava um carro nas ruas, e havia sempre gente a passar de um lado para o outro.
Ao chegar à Loja Nova, uma senhora muito elegante, bem vestida, com os lábios pintados de vermelho, com um cabelo loiro muito bonito, veio falar com o senhor Mareco, e eu fiquei muito orgulhoso, pois conhecia também o meu pai. Era a dona Micas; fez-me também uma carícia, que me fez corar, de vergonha e prazer. Quando chegamos ao hospital, um edifício enorme, com uma entrada muito larga, e ornamentada com canteiros de flores, já o médico nos esperava.
Era uma espécie de João Semana cá do sítio, cumprimentou com amizade, o Mareco e o meu pai. Era o doutor Esteves, figura muito estimada nestas bandas, pelos seus conhecimentos na medicina, e também pelo seu amor, de notoriedade pública, à raça cavalar. Diziam os entendidos com ironia, que se no caminho encontrasse um homem e um cavalo, doentes, socorria primeiro o cavalo, e só depois o homem.
O médico agarrou o meu pulso e examinou com muita atenção o sítio onde a cobra tinha mordido.
- Dói-te rapaz? - perguntou, fazendo várias vezes pressão, e olhando o meu rosto com o olhar agudo e profundo dos seus olhos verdes.
- Não, respondi! Não dói nada.
O clínico rapou de uma lupa, observou como mais pormenor a ferida, e disse para o meu pai:
- Felizmente não foi víbora, foi uma serpente não venenosa. Inchou muito, porque os dentes deviam estar sujos e infectados, mas não há perigo algum.
Vamos desinfectar a ferida e pronto, podes ir tranquilo. Mas olha com esta lupa, como a mordedura está bem nítida! Olha, vêem-se bem as marcas dos dentes, e o ferrão. Mas está tudo bem. Não haverá complicações.
O Mareco convidou então o meu pai, agora completamente tranquilisado, a visitar uma quinta que ele tinha comprado há pouco, em Prado, e foi a coisa mais linda que eu tinha visto até aí. Era um palacete de dois pisos, com grandes e vastas janelas, umas escadas muito largas que davam acesso ao rés-do-chão, ligeiramente sobre elevado.
O todo construído num terreno amplo, fechado por um muro de tijolos e cimento, com grandes varões de ferro, que o vedavam dos intrusos, mas deixavam passar a vista e a luz. No terreno havia uma profusão de rosas, hortências e jacintos, que lhe davam um ar festivo e encantador.
Como era lindo Melgaço, como era belo este Portugal, pensei eu!
In: Ecos dos Montes Laboreiro
António Bernardo
Edição do autor
2008
pp.131-135