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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

O CONTACTO COM A NATUREZA

melgaçodomonteàribeira, 21.08.21

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“O CONTACTO COM A NATUREZA…”

 

A FORJA

Era Domingo de Páscoa. O pároco percorria os caminhos e entrava nas casas dos paroquianos para dar a beijar a sagrada Cruz. O séquito era constituído pelo sacristão levando o crusifixo, e mais dois ou três elementos para transportar o caldeiro da água benta, tocar a campainha, assinalando a passagem do acompanhamento. E ainda para recolherem as dádivas dos paroquianos. À entrada do lugar juntavam-se-lhe as crianças integrando o séquito de casa em casa, para saborear as várias guloseimas. Dada a extensão e dispersão dos lugares, o pároco dividia as visitas. O Domingo era destinado aos 5 lugares fixos e às brandas até ao Rodeiro, passando em casa deles, nas Coriscadas, a meio da tarde, no regresso e por isso, ele e a mãe, iam a casa dos avós, da parte da manhã.

Pouco antes da chegada do acompanhamento apareceu um rapaz vizinho, com ar triste, a perguntar à avó se podia ficar ali para beijar a cruz.

- Claro rapaz! – disse a avó Isabel.

Passado algum tempo ouviu-se a campainha e a algazarra das crianças no terreiro de S. Bento. A avó chamou toda a gente para irem à missa a celebrar na capela de S. Bento. No final dirigiu-se rapidamente para casa, onde estava uma mesa posta, com a melhor toalha de linho e vários doces, incluindo o tradicional pan leve, e uma garrafa de vinho fino.

O Padre, vestido com uma opa branca e o barrete de quatro bicos, entrou aspergindo água benta para benzer a casa e o sacristão deu o crucifixo a beijar às pessoas, ajoelhadas ao redor da mesa, começando pelo chefe da casa. Terminada a ronda, o padre e a comitiva foram convidados a provar os doces, enquanto o avô entregava a um dos acompanhantes uma garrafa de Porto e alguns ovos para o senhor abade. Alegando ter de percorrer um longo caminho, o padre provou um bocado de pan leve, desejou uma Santa Páscoa e saiu, acompanhado dos seus acólitos, enquanto as crianças engoliam alguma coisa à pressa e corriam para a casa seguinte, exactamente a do rapaz. Como ele não se mexia o Manuel perguntou-lhe:

- Não vais a tua casa beijar a Cruz?

- O Padre não vai a minha casa! – respondeu o garoto com tristeza.

- Porquê? – perguntou, intrigado.

- Não sei! – respondeu, encolhendo os ombros.

Ele e a mãe almoçaram com os avós e os primos e depois foram para casa deles, onde a meio da tarde iria passar a Cruz. Durante o caminho perguntou à mãe:

- Ó mai o Padre não vai a casa do José, porquê?

- Porque o pai e a mai não são casados. São amigados.

- Mas o senhor abade, no catecismo, diz que todos somos irmãos e filhos de Deus!

- Pois é meu filho, mas depois somos tratados de maneira diferente. Isso tem a ver com o padre e não com Deus. Nem o filho deles queria baptizar!

Não disse mais nada mas ficou a cismar sobre a razão de Deus tratar os filhos de forma diferente.

Uma manhã, em casa da avó, dirigia-se para o terreiro de S. Bento, quando reparou num papel pendurado na porta da capela. Falava em eleições para Presidente da República e num General Norton de Matos. Não percebeu muito bem porque dizia mal de Salazar, cujo retrato estava pendurado na Escola, por trás da secretária da professora, e foi perguntar ao tio.

- Ó tio, já viu o papel na porta da capela?

- Já. Vai haver eleições para Presidente da República. Neste momento o Presidente é Carmona mas quem manda em Portugal é Salazar. Há muitos portugueses contra ele e querem mudar os do Governo. Por isso decidiram apresentar o general Norton de Matos, que é contra Salazar, para Presidente da República. Esse papel é para informar as pessoas.

- As pessoas estão contra Salazar porquê?

- Porque mantém Portugal na miséria e como um País atrasado. Não vês esses desgraçados a trabalharem na estrada? Mal ganham para comer uma posta de bacalhau salgado com pão e um copo de vinho. E a nossa vida é igual. Não temos médico e muitas pessoas morrem por não poderem ser tratadas a tempo. Para todos os lugares só existia a Escola da Vila. Por isso há muita gente a não saber ler nem escrever. O povo juntou-se e com muito sacrifício construiu a Escola onde tu andas e ofereceu-a ao Estado, mas só ao fim de alguns anos colocaram uma regente a ensinar. Não há electricidade nem estradas. Quando tentamos ir para outro país, onde se ganha mais, somos presos, como o teu pai e outros. Além disso as pessoas não podem falar. Se disserem mal do Governo podem ter problemas. Quem manda é o regedor, os guardas e o padre. Informam o governo de tudo.

A professora, na escola, dizia outra coisa e contou isso ao tio.

- Claro, os professores dependem do Estado e não podem contar a verdade, senão mudam-nos de local ou deixam de poder ensinar. Mas vai abrindo os olhos e aprende em não acreditar em todas as conversas deles!

Ficou intrigado mas o assunto foi esquecendo. O papel desapareceu no dia seguinte e alguns meses mais tarde a professora disse que Salazar continuava a mandar em Portugal.

O contacto com a natureza e o enfrentar dos desafios no seu dia a dia desenvolvia, no castrejo, um espírito de liberdade, avesso à imposição de qualquer norma exterior à comunidade.

Os de fora eram olhados com desconfiança e apelidados de pelicas ou peilans. A sociedade regia-se pelas suas próprias normas ancestrais. As ligações com os vizinhos galegos eram privilegiadas e consideradas naturais. Os esquemas arquitectados pelo poder para vincar a importância da fronteira separadora apenas obrigava a ter algumas cautelas, mas nunca conseguiram romper as ligações de solidariedade ou de interesses e cooperação entre os dois lados.

 

O Pegureiro e o Lobo

estórias de castro laboreiro

Manuel Domingues

NEPML

pp. 63 – 66