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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

TOMÁS JOAQUIM, UM BANDIDO SOCIAL

melgaçodomonteàribeira, 28.08.21

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 s.paio

MOVIMENTAÇÕES ABSOLUTISTAS NO PERÍODO DE IMPLANTAÇÃO DO LIBERALISMO

 

Célia Maria Taborda da Silva

 

No Alto Minho era o bando de Tomás Joaquim Codeço, mais conhecido por “Quingostas”, que desestabilizava a tranquilidade liberal. Natural de uma aldeia do concelho de Melgaço, actuava em toda a região minhota, assaltando a casa de constitucionais e libertando presos políticos ao mesmo tempo que aclamava o usurpador. Tinha ligações com alguns dos oficiais miguelistas de Braga e contactos com os carlistas da Galiza. Os militares liberais fizeram inúmeros esforços para o capturar, chegaram até a ter pessoas infiltradas no bando mas todas as tentativas para o apanhar redundaram em fracasso. Isto porque gozava de apoio popular como todos os “bandidos sociais”. Tal como o “bandido nobre”, de que Eric Hobsbawm fala na sua obra, Rebeldes primitivos, era considerado um herói pela comunidade, por isso, o protegiam. Contrariamente aos meros salteadores, os bandidos sociais permaneciam dentro da sociedade camponesa de onde saíram e eram considerados pela sua gente como heróis ou justiceiros, razão porque os ajudavam e apoiavam. As acções desse bandido eram aceitáveis dentro dos seus valores de comportamento, como quem rouba aos ricos para dar aos pobres ou mata para limpar a sua honra ou a de algum familiar. É esta relação entre o camponês e o rebelde que dá significado ao banditismo social e isso que o diferencia dos simples ladrões de estrada. O bandido social não roubava o camponês mas apenas os senhores ricos. Por esse motivo a sua popularidade só ocorria dentro do seu enquadramento regional, A este propósito, Hobsbawm adverte que um homem podia ser bandido social na sua terra e um simples ladrão fora dela. Este fenómeno, pré-político, foi desaparecendo com a modernização, por ter o seu suporte em sociedades baseadas na agricultura, lutando pela manutenção de valores tradicionais.

Tomás Codeço acabaria por ser preso em Janeiro de 1839 e assassinado em seguida pela escolta que o devia conduzir à prisão. Esta morte marcaria um ponto de viragem da luta absolutista na região pois não se voltaram a formar guerrilhas até 1846, altura em que renasceu a esperança miguelista.

Apesar dos movimentos de aclamação de D. Miguel e a formação de guerrilhas terem sido relevantes não lograram qualquer efeito prático, uma vez que os absolutistas não voltaram ao poder. No entanto, estes movimentos realistas contribuíram para aumentar a instabilidade de uma época conturbada e dificultar a tarefa dos governos liberais na implantação do liberalismo.

 

Retirado de: absolutistas.pdf

 

O CONTACTO COM A NATUREZA

melgaçodomonteàribeira, 21.08.21

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“O CONTACTO COM A NATUREZA…”

 

A FORJA

Era Domingo de Páscoa. O pároco percorria os caminhos e entrava nas casas dos paroquianos para dar a beijar a sagrada Cruz. O séquito era constituído pelo sacristão levando o crusifixo, e mais dois ou três elementos para transportar o caldeiro da água benta, tocar a campainha, assinalando a passagem do acompanhamento. E ainda para recolherem as dádivas dos paroquianos. À entrada do lugar juntavam-se-lhe as crianças integrando o séquito de casa em casa, para saborear as várias guloseimas. Dada a extensão e dispersão dos lugares, o pároco dividia as visitas. O Domingo era destinado aos 5 lugares fixos e às brandas até ao Rodeiro, passando em casa deles, nas Coriscadas, a meio da tarde, no regresso e por isso, ele e a mãe, iam a casa dos avós, da parte da manhã.

Pouco antes da chegada do acompanhamento apareceu um rapaz vizinho, com ar triste, a perguntar à avó se podia ficar ali para beijar a cruz.

- Claro rapaz! – disse a avó Isabel.

Passado algum tempo ouviu-se a campainha e a algazarra das crianças no terreiro de S. Bento. A avó chamou toda a gente para irem à missa a celebrar na capela de S. Bento. No final dirigiu-se rapidamente para casa, onde estava uma mesa posta, com a melhor toalha de linho e vários doces, incluindo o tradicional pan leve, e uma garrafa de vinho fino.

O Padre, vestido com uma opa branca e o barrete de quatro bicos, entrou aspergindo água benta para benzer a casa e o sacristão deu o crucifixo a beijar às pessoas, ajoelhadas ao redor da mesa, começando pelo chefe da casa. Terminada a ronda, o padre e a comitiva foram convidados a provar os doces, enquanto o avô entregava a um dos acompanhantes uma garrafa de Porto e alguns ovos para o senhor abade. Alegando ter de percorrer um longo caminho, o padre provou um bocado de pan leve, desejou uma Santa Páscoa e saiu, acompanhado dos seus acólitos, enquanto as crianças engoliam alguma coisa à pressa e corriam para a casa seguinte, exactamente a do rapaz. Como ele não se mexia o Manuel perguntou-lhe:

- Não vais a tua casa beijar a Cruz?

- O Padre não vai a minha casa! – respondeu o garoto com tristeza.

- Porquê? – perguntou, intrigado.

- Não sei! – respondeu, encolhendo os ombros.

Ele e a mãe almoçaram com os avós e os primos e depois foram para casa deles, onde a meio da tarde iria passar a Cruz. Durante o caminho perguntou à mãe:

- Ó mai o Padre não vai a casa do José, porquê?

- Porque o pai e a mai não são casados. São amigados.

- Mas o senhor abade, no catecismo, diz que todos somos irmãos e filhos de Deus!

- Pois é meu filho, mas depois somos tratados de maneira diferente. Isso tem a ver com o padre e não com Deus. Nem o filho deles queria baptizar!

Não disse mais nada mas ficou a cismar sobre a razão de Deus tratar os filhos de forma diferente.

Uma manhã, em casa da avó, dirigia-se para o terreiro de S. Bento, quando reparou num papel pendurado na porta da capela. Falava em eleições para Presidente da República e num General Norton de Matos. Não percebeu muito bem porque dizia mal de Salazar, cujo retrato estava pendurado na Escola, por trás da secretária da professora, e foi perguntar ao tio.

- Ó tio, já viu o papel na porta da capela?

- Já. Vai haver eleições para Presidente da República. Neste momento o Presidente é Carmona mas quem manda em Portugal é Salazar. Há muitos portugueses contra ele e querem mudar os do Governo. Por isso decidiram apresentar o general Norton de Matos, que é contra Salazar, para Presidente da República. Esse papel é para informar as pessoas.

- As pessoas estão contra Salazar porquê?

- Porque mantém Portugal na miséria e como um País atrasado. Não vês esses desgraçados a trabalharem na estrada? Mal ganham para comer uma posta de bacalhau salgado com pão e um copo de vinho. E a nossa vida é igual. Não temos médico e muitas pessoas morrem por não poderem ser tratadas a tempo. Para todos os lugares só existia a Escola da Vila. Por isso há muita gente a não saber ler nem escrever. O povo juntou-se e com muito sacrifício construiu a Escola onde tu andas e ofereceu-a ao Estado, mas só ao fim de alguns anos colocaram uma regente a ensinar. Não há electricidade nem estradas. Quando tentamos ir para outro país, onde se ganha mais, somos presos, como o teu pai e outros. Além disso as pessoas não podem falar. Se disserem mal do Governo podem ter problemas. Quem manda é o regedor, os guardas e o padre. Informam o governo de tudo.

A professora, na escola, dizia outra coisa e contou isso ao tio.

- Claro, os professores dependem do Estado e não podem contar a verdade, senão mudam-nos de local ou deixam de poder ensinar. Mas vai abrindo os olhos e aprende em não acreditar em todas as conversas deles!

Ficou intrigado mas o assunto foi esquecendo. O papel desapareceu no dia seguinte e alguns meses mais tarde a professora disse que Salazar continuava a mandar em Portugal.

O contacto com a natureza e o enfrentar dos desafios no seu dia a dia desenvolvia, no castrejo, um espírito de liberdade, avesso à imposição de qualquer norma exterior à comunidade.

Os de fora eram olhados com desconfiança e apelidados de pelicas ou peilans. A sociedade regia-se pelas suas próprias normas ancestrais. As ligações com os vizinhos galegos eram privilegiadas e consideradas naturais. Os esquemas arquitectados pelo poder para vincar a importância da fronteira separadora apenas obrigava a ter algumas cautelas, mas nunca conseguiram romper as ligações de solidariedade ou de interesses e cooperação entre os dois lados.

 

O Pegureiro e o Lobo

estórias de castro laboreiro

Manuel Domingues

NEPML

pp. 63 – 66

 

A IGREJA MATRIZ DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 14.08.21

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 igreja  de santa maria da porta

 

SANTA MARIA DA PORTA

Vamos apreciar algumas referências às diversas igrejas do velho termo de Melgaço.

Começamos pela igreja de Santa Maria da Porta, actual matriz.

Chama-se matriz à igreja principal de qualquer terra ou localidade quando havia mais igrejas aí.

Repare-se que são poucas as igrejas a que o povo se refere com o nome de matriz. Quando virmos igrejas com essa designação, procuremos investigar e verificaremos que elas tiveram outras igrejas anexas ou filiais.

Porque na vila de Melgaço havia três igrejas, a principal manteve-se com o nome de matriz ao passo que as outras perderam a sua posição.

Matriz se chamava e ficou a chamar-se a igreja de Santa Maria da Porta por ter sido a principal junta com as de Santa Maria do Campo e S. Fagundo.

A vila primitiva não era amuralhada, como teremos ocasião de ver no decurso deste estudo. Em volta da sua torre altaneira, havia o pequeno reduto amuralhado que se conserva ainda. Junto da fortaleza assentava a vila que não seria de muitas casas. Não era forçoso morar ali para fazer parte do concelho expresso no foral.

A curta distância da porta do castelo erguia-se uma igreja dedicada a Santa Maria que por isso se chamou da Porta com o fim de a distinguir de outra situada mais abaixo um pouco, no campo da feira, que por tal motivo se chamava Santa Maria do Campo a fim de a distinguir da primeira.

A igreja matriz existia nos fins do século XII, e já seria antiga. Foi então que se construiu outra, se não foi que se reconstruiu a que já havia, para comportar a população da nova vila. O estilo de construção, embora aleijado no decorrer dos tempos, mostra-nos bem a sua antiguidade. Melhor testemunho teme-lo na era inscrita junto da porta lateral a norte, embora já mutilada e ultimamente prejudicada pelo cimento aplicado.

A 30 de Junho de 1183 realizou-se um acordo entre o concelho de Melgaço e o Mosteiro de Fiães, sendo Abade D. Martinho. Desde já esclareço que o concelho corresponde ao que hoje dizemos câmara.

Deste acordo existem dois traslados no cartulário de Fiães, que, dizendo mais ou menos a mesma coisa, têm pequenas diferenças de texto mas rematam por iguais menções de assinaturas.

De redacção um tanto confusa, este documento, comparando as duas cópias, faz-nos perceber que o mosteiro tomava conta da igreja de Santa Maria de Melgaço durante 15 anos para a reparar e depois ficaria sendo metade do concelho e metade do mosteiro mas sempre indivisa e administrada pelo mosteiro.

Dois anos mais tarde, em 30 de Junho de 1185, teve lugar novo acordo, sendo abade do mosteiro de Fiães D. Pedro, de que há no cartulário também dois traslados. No essencial este acordo não difere do anterior e poderá ter sido motivado pela mudança do D. Abade de Fiães.

Passados mais dois anos, a 1 de Abril de 1187, novo acordo nos aparece no cartulário, mas desta vez com o arcediago de Valadares d. Garcia. O cargo de arcediago correspondia mais ou menos ao de arcipreste actual. Este arcediago D. Garcia, como se vê de outro documento do mesmo cartulário, era da quinta de S. Cipriano (hoje S. Cibrão) nos limites de Penso, e de apelido patronímico Nunes. É também a respeito da igreja de Santa Maria.

Por outro documento adiante citado, sabemos que este acordo de 1187 foi sobre a actual matriz. Quem interveio não foi o concelho mas sim «todos os moradores de Melgaço, tanto homens como mulheres», em concessão ao referido arcediago sobre a igreja de Santa Maria com a condição de a restaurar e edificar com a ajuda deles proporcionando-lhe materiais até que ficasse acabada e pronta. Depois ficaria o arcediago com uma terça parte para si e seus herdeiros, e eles com duas terças, continuando indivisa e em boa concórdia. Não se vê intervenção de qualquer autoridade, mas apenas de «todos os moradores de Melgaço, tanto homens como mulheres» e a confirmação do abade D. Martinho de Fiães.

Encontramos nova referência no ano de 1205. A 13 de Abril foi outorgado novo acordo relativo à Igreja de Melgaço, desta vez entre o arcediago de Valadares D. Garcia Nunes e seu protegido André Garcia com o mosteiro de Fiães de que era abade D. Domingos. O referido André Garcia devia ter em seu poder a «igreja de Melgaço que está edificada junto à porta da mesma vila» mas sob a tutela do dito arcediago em sua vida. Após a morte do arcediago conservá-la-ia em sua vida mas por alma dele daria todos os anos no dia da Ceia do Senhor (5ª feira santa) oito soldos para o refeitório do mosteiro. Este documento é assinado pelo beneficiado André Garcia juntamente com o concelho de Melgaço.

É esta a mais antiga referência que encontrei ao cognome «da Porta» designativo da igreja matriz de Melgaço, designativo que depois nos aparece muitas vezes.

Em 1246 realizou-se um acordo por arbitragem entre o mosteiro de Fiães e a igreja de Chaviães. Havia diferenças por causa de «terras, vinhas, dízimos e outras coisas» de que falarei ao escrever da igreja de Chaviães. Nesse acordo interveio «João Joanes pároco de S. Fagundo e procurador da igreja de Santa Maria da Porta.»

Fica, pois, comprovada a antiguidade da designação de «Santa Maria da Porta».

Nas inquirições de 1258 estiveram presentes na vila de Melgaço o abade e o celeireiro de Fiães, o prior de Paderne e o prior de Longos Vales e João Mónaco pároco de Santa Maria e muitos homens importantes do termo entre os quais 5 clérigos. A inquirição dá a informação de várias localidades do concelho de então.

Em todas as freguesias é mencionado o pároco, mas aqui apenas menciona «João Mónaco pároco de Santa Maria», que naturalmente é a da Porta, embora se arquive logo no início do depoimento que «Santa Maria da Porta e Santa Maria do Campo e São Fagundo» são reguengas, isto é, propriedade do Rei, o que hoje diríamos património do Estado.

Das inquirições de D. Dinis (1290, 1301 e 1307) nada se depreende a respeito das igrejas.

Em 1320 o Papa concedeu ao rei D. Dinis durante três anos a décima parte das rendas eclesiásticas para a guerra contra os mouros.

Fez-se uma estimativa geral dos rendimentos das igrejas de todo o reino. Nesse rol aparece-nos Santa Maria da Porta taxada em 110 libras, e Santa Maria do campo e São Fagundo em 30 cada uma, donde se vê que a primeira estava, em plano bastante superior quanto a rendimentos. Para comparação direi que Roucas foi taxada em 120, Penso em 62, Prado em 12, S. Paio em 30, Castro Laboreiro em 280, o mosteiro de Fiães (só pelo que tinha em Portugal e sem atender ao que tinha na Galiza) em 400 e o mosteiro de Paderne em 500.

No chamado Igregário de D. Diogo de Sousa, que foi arcebispo de Braga de 1505 a 1532, aparecem-nos ainda as 3 igrejas, sendo Santa Maria da Porta metade do mosteiro de Fiães e metade do concelho, Santa Maria do Campo de colação do Arcebispo, isto é, concedia-a livremente ao clérigo que entendesse e em igual categoria a de São Fagundo que já não tinha cura de almas, isto é, já não era paroquial.

A de Santa Maria da Porta era de Fiães e do concelho, isto é, o pároco era escolhido e apresentado ao Arcebispo alternadamente pela Câmara e pelo mosteiro de Fiães.

Em princípios do século XVIII a igreja de Santa Maria da Porta era abadia ainda com a apresentação do pároco alternadamente pela Casa de Bragança e pelo mosteiro de Fiães.

 

Obra Histórica

Padre Manuel António Bernardo Pintor

Edição do Rotary Club de Monção

2005

pp. 80-83

 

HOTEL RANHADA, UM HOTEL COM HISTÓRIA

melgaçodomonteàribeira, 07.08.21

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capela do hotel ranhada

TERMAS DE MELGAÇO:

OS DIAS SABOROSOS DE UMA GLÓRIA SUBMERSA

ROTEIRO SENTIMENTAL

Por Pedro Leitão

 

Estamos em Agosto, o ano será de 1948, pouco mais ou menos. São seis da manhã. A esta hora, a senhora Condessa de Saborosa já está levantada e vestida. Desde que enviuvou apronta-se sempre de preto carregado. Dá os últimos retoques ao cabelo no seu quarto, é dos melhores que se alugam aos hóspedes de mais posses. Tem mesmo quarto de banho privativo, é dos poucos que existem assim no hotel. Os outros são bons, estão bem mobilados e decorados, mas ficam-se pelo lavatório e pelo bidé de porcelana. A senhora condessa vai descer daqui a nada à sala de jantar para um pequeno-almoço sóbrio, para não desfalecer pelo resto da manhã. Anda a águas nas termas, e a dieta pede mais respeito pelas manteigas e pelos açúcares. Por todo o grande Hotel Ranhada, o dia desperta aos poucos com o tufa-tufa dos passos delicados de outros hóspedes madrugadores. São senhoras distintas, do melhor que haverá na nossa aristocracia. Mas a mais exemplar no madrugar é, sem dúvida, a senhora Condessa de Saborosa. Há muitos anos que lhe conhecem este hábito aqui pelo hotel, onde é tratada como se fosse da família. Mesmo agora, que ultrapassa os sessenta anos, teima em se levantar cedinho, da mesma maneira que o fazia aos vinte. A menina Julinha, filha do senhor Mário Ranhada, o dono do hotel, ainda dorme a sono solto, indiferente a este suave bulício. Só o pai já está levantado para a azáfama matinal, orientando os criados, que a canseira da manhã ainda está para vir, pois haverá que cuidar do almoço para duzentos hóspedes (A pequerrucha haveria de chegar a avó sem nunca ter sabido o nome desta condessa. “Só a tratava de senhora condessa” desculpa-se, hoje, a senhora D. Maria Júlia Ranhada).

A senhora condessa está a sair agora mesmo do hotel. Sobressai pelo seu cabelo branco, com carrapito bem feito atrás e popa alta à frente, são arranjos que encaixam melhor ainda nas suas feições muito finas, diferenciando-se, à saída, das demais senhoras da sua condição, que lhe seguem o passo. Salta à vista que sabe zelar a linha. Apesar de sexagenária, irradia ainda beleza e faz adivinhar que, na mocidade, fora bem capaz de arrastar atrás de si muitos pretendentes. Cá fora, o arruado que conduz ao balneário termal ainda se resguarda do calor arrebentadiço neste começo de mais uma manhã estival. A fresca vem-lhe do manto sombrio destes plátanos e destas acácias, que correm o trajecto, embelezando-o como prelúdio de uma vida termal que se adivinha intensa lá para o meio da manhã. À porta, está o calhambeque do hotel para que estas senhoras e outros hóspedes não façam a caminhada a pé, que é sempre coisa para um quilómetro (noutros tempos, ia-se de charrete, o cocheiro era o senhor Rocha, que acumulava estas funções com as de corretor do hotel, até ia à estação de Monção esperar os hóspedes, depois deu-lhe para ser também dono de um hotel, o Hotel Rocha, hoje devoluto).

O senhor Mário Ranhada faz questão que embarquem todos no pequeno autocarro, mas não há nada a fazer: todos recusam. A pé é que se vai bem, as diabetes mandam andar. Partem assim cedo para guardar vez no balneário termal. A meio da manhã, já bebidas as águas e tomados os banhos, a senhora Condessa de Saborosa encontra-se no Parque das Termas com a senhora D. Amélia. Esta sua grande amiga é esposa do professor doutor Eduardo Costa, director do Instituto Pasteur em Lisboa, que acumula agora estas funções com as de director clínico da estância. Andam atarefadas com a quermesse, eu organizam todos os anos a favor dos pobres das redondezas, enquanto estanciam no Peso de Melgaço. Passam estes dias a recolher donativos e compram roupas e outras coisas necessárias. Depois da cura do corpo, fazem a do espírito. A excelentíssima dona Amélia é uma senhora muito alta. Quando está ao lado do marido, que é assim sobre o baixinho, vê-se que a diferença entre ele e ela vai a modos de capela para catedral. O distinto médico anda sempre de lacinho clássico, mesmo de bata branca nunca o tira, fica a dar consultas até tarde, às vezes são nove da noite e ainda está a atender aquistas. La noblesse oblige.

Por esta manhã a meio, já outros aquistas percorrem, por mero passeio, as avantajadas alamedas do Parque das Termas, colmadas pela abundante ramaria. O seu traço urbanístico saiu do lápis do senhor José Ranhada, tio da Julinha, quando geriu as termas, faz já alguns anos. Por esse tempo o senhor José Ranhada tinha o estranho hábito de se entrincheirar no escritório das termas, nas quentes tardes de verão, e, de arma de pressão apontada, mirava, de olhinho caído, toda a truta que subisse, arteira, o regato cristalino que desce à ilharga daquele ponto. Qual águia-real, era certeiro de visão e muito mais de mira, não precisava de garras, nem de voos picados, a chumbada garantia-lhe boa pescaria para a janta.

A senhora Condessa de Saborosa será dessa época, pois há muito ano que vem aqui às termas. Escolhe sempre o Julho ou o Agosto. São os meses melhores para estar, em grupo, com a gente da sua condição. Nunca reserva hotel em Setembro. Este é o mês mais procurado pelos novos-ricos, e a senhora condessa e o seu grupo não querem misturas. Mas, se espreitarmos a bolsa duns e doutros, veremos que uma outra D. Amélia, a senhora D. Amélia de Ascensão Moutinho, burguesa típica do Porto, mete muita fidalguia no bolso. Ostenta jóias até ao pescoço, põe-se toda “um luxo”, é podre de rica, não tem descendentes, vai deixar tudo a uma afilhada (“Boa senhora, esta D. Amélia Moutinho. Estava atenta às asneiras que eu e as minhas irmãs fazíamos em pequenas, metia-nos respeito, mas, apesar da sua aparência austera, repreendia-nos com coração de mãe”, recorda, hoje, a D. Maria Júlia Ranhada, a Julinha).

  1. Amélia Moutinho, dona do Porto Meia, é há muito hóspede do Hotel Ranhada, está cá todos os anos, traz motorista e dama de companhia, já tem reserva para os primeiros vinte dias deste Setembro que vem, prefere sempre o Setembro, e faz bem em não escolher o Agosto, ao menos escapa ao irritadiço marido da senhora Condessa de Feijó. É uma criatura insuportável aquele homem assim baixinho e gordinho, oh! se não é. Em Setembro que vem teremos aqui no Hotel Ranhada os Teixeira, eles são donos de uma cadeia de talhos. Trazem a família toda, são para aí umas trinta pessoas. Vêm os avós, os netos, as noras, as sogras, a prole é de banzar. São dos mais antigos hóspedes do Hotel Ranhada. Esta família já cá vem a águas desde finais do século XIX, os mais velhos ainda privaram com o fundador, o senhor António Maria Ranhada. Hóspedes tão antigos como eles só os da família Linhares. Um dia antes de se instalarem, já cá está uma carrinha para despejar as malas todas. Menos canseiras dão os lavradores ricos que chegam por finais de Setembro e que por aqui ficam até 10 de Outubro se tanto. O senhor Mário Ranhada chama-lhes os “hóspedes das castanhas”. Nesta última leva chegam os Sousa Lopes, que, não contentes com o que ganham na lavoura, ainda se metem a fabricar botões. Pelo fim desta manhã de Agosto, há-de comentar-se à mesa, com pilhéria, estas e outras bugiarias.

Boas maneiras

Os empregados de mesa do Hotel Ranhada nunca iam vestidos “às três pancadas” para a sala de jantar. Faziam sempre duas mudas diárias. Ao almoço envergavam casaquinho branco, com botões dourados, e calça preta. Ao jantar, iam de trajo escuro, tipo smoking, com os colarinhos de camisa branca virados e laçarote preto. Mas José Meleiro de Castro, que lá trabalhou ainda no período áureo, já não é do tempo dos colarinhos virados e do fato “à grilo”. Embora vestisse à noite fato escuro, a gola do casaco já levava cetim preto. Ao almoço era a farda do costume. Os hóspedes não se aprontavam por aí além para a refeição do meio-dia. Mas à noite já iam para a mesa mais aperaltados. Os cavalheiros caprichavam com “bom fato de fazenda lisa, de tons azuis ou castanhos, e gravata a condizer”, tanto quanto se recorda José Meleiro. As senhoras apareciam com vestidos de seda, muito “levezinhos”, e não esqueciam os seus colares. Só as mais idosas faziam questão de levar, às vezes, o seu “xailezinho”. Em Julho e Agosto, serviam-se entre 150 a 200 hóspedes. “Todos ao mesmo tempo naquela sala de jantar”, lembra José Meleiro. Eram rápidos a comer, estavam quase todos a dieta, “tudo à base de peixe cozido e de carnes grelhadas”. Durante a refeição conversavam baixinho, eram muito delicados, não se ouvia sequer um bater de talheres. “Até exageravam”. Mas eram pessoas “de muito respeito e muita educação”. À noite, acabada a refeição, passavam à sala de jogos e não resistiam a contar anedotas “sem palavrões, nem grandes gargalhadas”. Os cavalheiros falavam também de negócios, mas a conversação era cordata. Aos fins-de-semana, a sala de visitas virava, às vezes, sala de baile, mas apenas se polcava, à falta de melhor orquestra, ao som das concertinas do senhor Avelino Gonçalves e do seu sobrinho. Ambos trabalhavam como afinadores daquele género de instrumentos no Peso de Melgaço. Mas Avelino Gonçalves ganhava também a vida como corretor do Hotel Figueiroa, há décadas em completa ruína, junto ao Parque das Termas. (O último dono foi um tal Manolo, galego, o filho é médico em Madrid e a filha foi viver para Vigo. “Nunca mais voltaram a Melgaço”). José Meleiro de Castro ainda é primo afastado dos Ranhada. “O António Maria Ranhada, fundador do hotel, casou com uma irmã da minha avó”. Foi trabalhar para o Hotel Ranhada muito novo, para escapar ao duro trabalho nos campos de que o pai era proprietário. Começou como despenseiro, passou a empregado de mesa e, por último, ao fim de 20 anos, já era chefe de mesa. “Era o último a sair e a fechar as portas”, recorda.

A nostalgia do comboio que trazia gente da Galiza

A estação ferroviária é galega, mas nela desembarcaram, durante anos, até 1915, muitos portugueses que iam tomar águas a Melgaço. Fica em Arbo, na margem direita do rio Minho. Desta terra raiana da Galiza avistam-se as termas de Melgaço. A estação de Arbo servia, assim, de alternativa para os aquistas que, naqueles tempos, só tinham comboio até Valença. Para não fazerem o resto da viagem até Melgaço em carros de cavalos, passando por Monção, onde a via-férrea chegara tarde (e mal), seguiam então de comboio por Tui e, daqui, subindo a margem direita do Minho, chegavam à estação de Arbo. Só tinham, depois, de atravessar o rio em barcaça. Na margem esquerda esperavam-nos as charretes postas à disposição pelos hotéis das termas melgacenses. Maria Júlia Ranhada não viveu esse tempo, mas a estação galega de Arbo aviva-lhe sempre a saga desses hóspedes, que fazem também a história dos primitivos tempos do hotel, fundado por seu avô, António Maria Ranhada. Quando lá vai, sente a nostalgia dos comboios que, outrora, traziam gente para as termas de Melgaço. Nesta gare, correm-lhe ainda as histórias da infância, que ela e as irmãs ouviram contar. Vem-lhe à memória o avô António Maria, que ali desembarcara um dia, muito doente, para se salvar com a água de Melgaço.PL

 

Retirado de: SIM Revista do Minho

 

www.revistasim.com/pt/?p=1795