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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

O CASTELO DE MELGAÇO POR CARLOS A. BROCHADO DE ALMEIDA I

melgaçodomonteàribeira, 10.07.21

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A CONSTRUÇÃO DO CASTELO E DO MURO DA VILA

 

É voz corrente ter sido o rei D. Afonso Henriques o mentor da ideia que conduziu à construção do castelo que defendia a povoação a quem havia concedido foral, no pressuposto que um burgo de fronteira, dotado de tal honra, não poderia existir sem a correspondente componente militar. É certo que as demais povoações raianas do Minho, elevadas à categoria de vila e concelho, tinham o seu castelo, mas também não é menos verdade que a concessão de uma tal prerrogativa não implicava, logo, o seu amuralhamento.

O Castelo de Melgaço foi construído no ponto mais saliente e defensável da povoação e esta, numa primeira fase, ficou fora dos planos defensivos arquitectados para o sítio. Algo semelhante terá acontecido com Monção e Valença e sucedeu, indubitavelmente, com Vila Nova de Cerveira. O rei D. Dinis quando, em 1320, instituiu ali uma póvoa mandou construir um castelo, mas a povoação, incluindo a sua igreja – dedicada a S. Cipriano – ficou deliberadamente de fora. A sua fortificação só viria a acontecer na altura das Guerras de Aclamação, como antes  já o havia sucedido a outras vilas de fronteira e a outras não tão expostas, casos de Viana, Ponte de Lima e Barcelos, cercadas com “muros” ao longo da segunda metade do séc. XIV.

É voz corrente que o Castelo de Melgaço é obra do primeiro rei de Portugal. Em defesa desta tese há certos argumentos, alguns deles dignos de atenção.

Foi efectivamente D. Afonso Henriques quem promoveu Melgaço ao conceder-lhe Carta de Foral. A sua outorga, se outra motivação não fizesse, legitimou uma pequena aglomeração com características urbanas, localizada num espaço entre o Minho e o Lima, num ponto onde começava a aceitar-se que por ali passava a linha de fronteira entre dois reinos. O segundo argumento, sendo de carácter militar, não é menos importante. Ele deriva do facto do rei conhecer pessoalmente o território e de saber da importância que o burgo tinha para a defesa do espaço que lhe ficava na retaguarda, mormente as linhas de penetração que davam acesso ao Lima e mais para Sul a duas cidades de capital importância para as aspirações independentistas dos nobres portucalenses: Braga e Guimarães. De acordo com o texto da Carta de Couto concedida ao mosteiro de São Salvador de Paderne – “istum fretium et servitium fuit datum quando tomavit dominus rex Castellum de Laborario” – o rei D. Afonso Henriques conduziu pessoalmente uma ofensiva que visava retomar e retomou o Castelo de Castro Laboreiro. Tudo aconteceu em 1141 quando Afonso Henriques invadiu a Terra de Toronho, território fronteiriço à linha do Minho e que tinha Tuy como principal ponto de referência. Esta acção bélica levou à invasão do Minho e à consequente tomada do Castelo de Castro Laboreiro pelos leoneses, à data, uma estrutura roqueira assente sobre os escombros de uma velha povoação da Idade do Ferro, pois somente no reinado de D. Dinis é que o castelo ganhou a forma que ainda hoje ostenta.

Não havendo no Foral de Melgaço nenhuma alusão ao castelo ou a qualquer outra estrutura de carácter defensivo, sendo igualmente omissos, a este respeito, os vários documentos do tempo de D. Afonso Henriques pertencentes ao Cartulário de Fiães, será foi deste monarca que partiu a ordem para a construção do castelo? Bernardo Pintor, um estudioso criterioso da realidade medieval de Melgaço, duvida e, pelo menos, em duas passagens expressa-o claramente: “Dizem alguns autores que D. Afonso Henriques levantou em 1170 o castelo. Documentos a provar ainda os não vi e nem sei que os haja” e “dizem alguns autores que este rei levantou o castelo que foi apoiado pelo Prior do Mosteiro de Longos Vales, mas não encontrei referências documentadas”.

As dúvidas, muito legítimas, de Bernardo Pintor assentam no facto de não haver na documentação alusões claras e directa acerca da actuação do rei em Melgaço neste campo e também porque no texto do Foral não há qualquer referência à figura do alcaide, que tinha um papel eminemtemente militar e superintendia ao castelo, sendo unicamente mencionado o vigário do rei, cujo cargo era funcionalmente administrativo e fiscal.

Os defensores da tese que o castelo nasceu com o rei D. Afonso Henriques beberam a informação num documento – a denominada Carta de Foral concedida por Afonso Henriques a Castro Laboreiro – que a crítica moderna dificilmente aceita como autêntico. Neste texto e a propósito dos limites de Castro Laboreiro dizia-se que o seu território confrontava com o antigo castelo de Melgaço que o Rei Ramiro havia edificado para repelir os inimigos que infestavam o Alto Minho e Portugal.

Mas qual dos reis com o nome de Ramiro?

O primeiro com tal nome, Ramiro I, reinou entre 842 e 850. Durante o seu curto reinado a Galiza sofreu violentas incursões dos Normandos e dos Muçulmanos, estes enviados pelo emir Abdal-Rahman II. O segundo era filho de Ordonho II que morreu em 924. Os seus três filhos vieram a revelar-se contra o primo Afonso Froilaz, sucessor de Froila, que havia sucedido no cargo a seu irmão. Os três, vencedores, acabaram por repartir o reino entre eles, cabendo a Galiza a Sancho Ordonhes e o território mais ocidental, isto é, o Condado Portucalense, a Ramiro II. Este rei, que governou com uma certa violência contra familiares e apoiantes, desenvolveu uma política de consolidação do Condado Portucalense ao atribuir a liderança a Vímara Peres.

Ramiro II morreu em 951 e sucedeu-lhe o filho Ordonho III que morreu em 956. A este viria a suceder o irmão Sancho I e a este o filho Ramiro III que reinou até 984, entre a contestação dos opositores e campanhas defensivas contra as razias dos Normandos e os ataques dos Muçulmanos. Será, aliás, poucos anos depois, em 988, que Almançor desencadeará uma das mais violentas incursões à Galiza, tendo saqueado e incendiado Santiago de Compostela.

Se tal texto fosse verídico fazia reportar a construção do Castelo de Melgaço claramente a um período pré-nacional e pré-românico, mais concisamente ao séc. IX. Naquela época ainda não existia a política de construir castelos junto a povoações ou de as situar no interior de cercas defensivas. É o período dos castelos de montanha, de refúgio episódico, por altura das algaras mouriscas. É o tempo do aproveitamento das altas e densas penedias, muitas das vezes dos velhos castros da Idade do Ferro. São inúmeros os exemplos espalhados pelo Entre-Douro-e-Minho e, no caso concreto de Melgaço, não faltam alusões a castelos pré-românicos, os tão propalados castelos roqueiros.

Se o documento fosse fiável o território de Castro Laboreiro estender-se-ia até muito próximo da vila de Melgaço, mais concretamente até ao Monte de São Mamede, que os textos apelidam de “mons Cotaro”, sítio onde nós suspeitamos que se localizava o castelo roqueiro responsável pela defesa e refúgio das populações que estavam dele “subtus mons”, encontrando-se entre elas a “villa” de Cavaleiros.

Se o documento fosse considerado pela crítica actual como autêntico, teríamos provavelmente de deslocar o castelo roqueiro do seu habitat natural para o morro onde viria  a constituir-se a futura povoação. Não porque a colina onde está o castelo actual não reúna as necessárias características defensivas – o espaço em redor do castelo está topograficamente alterado e alteado – mas porque as suas condições de defesa estão mais de acordo com uma política militar de defesa passiva vigente na época românica que com a anterior, assente na defesa ocasional de um território com base numa população dispersa e sem características de ajuntamento, à moda dos futuros burgos.

Apesar do peso de todas estas considerações é possível que a ideia de construir um castelo em Melgaço tenha partido de D. Afonso Henriques, porque ali havia um burgo merecedor de Carta de Foral e por isso mesmo necessitado de protecção militar. Por um lado tornava-se necessário defender uma região, cada vez mais entendida como fronteira entre regiões que recentemente tinham alterado os laços políticos que os uniam.

 

(continua)