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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

O TOJO MAIADO

melgaçodomonteàribeira, 26.06.21

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O BIVAQUE DOS FASCISTAS

 

Desde o princípio do mundo talvez, diz uma das atuais terra-tenentes desses “andengues”, que os portugueses possuíam propriedades do lado de lá da fronteira. Eram campos de pasto, de feno, carvalheiras, “uzeirais”, tojais, que pouca valia deviam ter para os galegos mas que eram explorados e mantidos por portugueses. Todos os três meses iam a Crespos pagar as “pagas”, o que até dava jeito pois a viagem servia também para comprar a melhor preço bacalhau, azeite, chocolate, farinha triga, toucinho branco até, quando o caseiro se esgotava. Estava-se ainda longe do final do século XX quando acabaram com essa contribuição, por insignificante que deveria ser para o erário público do país vizinho. Com os aumentos de impostos que se sofrem nos dias que correm e o descalabro financeiro que a televisão mostra também na Espanha, há quem tema pelas “pagas” sejam repostas, mas em multiplicado. Outros pensam de modo diferente receando antes uma expropriação justificada pela falta de uso da terra. A ver vamos, o que o futuro reserva a esta realidade local é incerto e poderá até eternizar-se tal como está.

Por fracos que fossem os proventos daquelas propriedades, os seus donos exploraram-nas até quase ao virar do milénio. Depois aconteceu-lhes o mesmo que aos terrenos em Portugal: foram sendo progressivamente votados ao abandono, não restando hoje quaisquer das atividades tradicionais que foram o ganhapão de gerações e gerações, antes das reformas e pensões com que quase todos são contemplados. Essa pequena fonte de recursos de além fronteira só conta hoje na memória saudosista e em raras conversas dos antigos, muitos dos atuais e futuros proprietários nem será capaz de localizar os seus prados.

No decurso da guerra civil espanhola e mais tarde, durante e para além da segunda guerra mundial, o controlo do vaivém entre os dois países era efetivo: pessoas e animais tinham de andar munidos da respetiva identificação. As “guias” davam razão do que cada proprietário possuía, terras e cabeças de gado, bem como cães e carros de bois. Não havia contemplações para quem não cumprisse, não era permitido levar um animal a mais e quem prevaricasse ficava sujeito a punição que podia ser o impedimento de atravessar a fronteira, de ver os animais retidos, de pagar uma multa ou, em casos extremos, de se ver conduzido para um posto da guardia civil. Não brincavam em serviço os carabineiros dos idos anos trinta, quarenta e cinquenta.

Durante esse período de razia de vidas humanas os portugueses da raia não podiam atravessar a fronteira antes do nascer do sol ou depois de o mesmo se ter posto. Estava-lhe igualmente interdito o trânsito com dinheiro nos bolsos, não fosse algum “celerado” refugiado beneficiar da ajuda dos portugueses. Os falangistas, que, como é sabido, prolongaram a sua atividade de guerrilha muito para além do término da guerra civil, eram presença assídua nos caminhos trilhados pelos castrejos, entre os marcos um e vinte e tal. Eram agressivos e mais papistas do que o papa, quer dizer, chegavam a ser mais controladores e violentos do que a guardia civil. O povo temia mais os bivaques amarelos do que os próprios carabineiros e, sobretudo as mulheres que temiam pela sua honra, fugiam de encontros com eles.

Um dia saía, asinha, Isabel da Barreira para ir guiar a água a um campo de feno na Galiza. Encontrou à saída do lugar um comerciante de gado pronto a pagar-lhe ali mesmo um vitelo que lhe tinha comprado. Isabel precisava do dinheiro, não o recebendo no momento ficava sem saber quando o veria, pelo que resolveu arriscar e seguir para a raia com ele. Guardou-o bem escondido junto ao seio, debaixo do corpete, longe do salvaconduto, com sorte não ia ter maus encontros. Apressou-se a chegar ao seu destino, abriu as “tolas” e certificou-se que a água tinha caminho aberto até ao fundo do campo. Sentou-se um momento para espraiar o olhar sobre a propriedade, tão bonita, tão limpa, tão bem murada, pena que ficasse tão longe do eido. Olhou para o portal de saída e o seu coração começou a bater em ritmo acelerado: um bivaque amarelo escondia-se mesmo ao lado do ponto de saída. Desviou a vista, como a esconjurar a presença do inimigo. Voltou a olhar e lá estava o chapéu amarelo a abanar para um lado e outro. Diabo de homem, porque não se mostrava? Devia estar com más intenções, queria apanhá-la de surpresa, maldito! O dia declinava e Isabel sem coragem de se pôr a caminho. Dali a pouco tudo seria pior, o sol estava quase a cair para lá da Cabeça do Pito. Sol posto e ela ali no prado, encurralada, seria a sua desgraça!

Estava neste indeciso e temeroso cismar quando ouviu um melodioso assobio. Vinha do lado da Corga da Gândara. Pronto, outro maldito que se ia reunir ao que a espiava, escondido, o cobarde, só o bivaque amarelo a indiciar a sua presença. A força que a mantinha pregada ao chão aumentou e o medo tomou o lugar do receio, a barriga a revolver-se-lhe toda. Começava a encomendar-se à Senhora dos Aflitos e eis que ouve chamarem por ela. Reconheceu logo a voz de Domingos, seu vizinho e compadre e levantou-se como uma flecha, atravessou o campo a correr, descurando onde punha os pés, o que menos lhe importava era os socos cheios de água, queria o amparo da companhia. Fez-lhe sinal para parar, alcançou-o e segredou-lhe que tinham companhia. Estava enganada, acabara de se cruzar com eles no sentido contrário, baixavam para Lapela.

Aproximaram-se do ponto fatídico onde o biltre se escondia e Isabel riu-se em voz alta do seu próprio medo: o que ela tinha tomado por um bivaque amarelo à sua espreita não passava de um grande tojo maiado abanando ao vento. Nem se aborreceu com os chistes do Domingos nem se apressaram a chegar ao marco três antes do pôr do sol, se os falangistas se dirigiam para o lugar de Lapela tinham tempo de regressar com calma e fazer da caminhada um momento de partilha.

O medo de se confrontar com os fascistas e ser maltratada até a fizera esquecer-se do dinheiro guardado na quentura do seio, só à noite, ao desapertar o colete, antes de se deitar, é que encontrou as notas que o Cerdeirinha lhe tinha dado à tarde.

 

                                                              Olinda Carvalho

Publicado em A Voz de Melgaço

1 de Abril de 2015

UM BENEMÉRITO DE MELGAÇO

melgaçodomonteàribeira, 19.06.21

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casa amadeu abílio lopes

PELO HOSPITAL

(A Voz de Melgaço, 15. 11.1963)

NO DIA DE REIS… TODO O CONCELHO PELO HOSPITAL!

No passado número do nosso jornal, lançámos a ideia dum novo cortejo para o nosso hospital. Faz-se por necessidade. Com a compra dos terrenos, para a construção do novo hospital, ficamos sem reservas, sem nada, para se acudir aos nossos doentes. E temos de contar com a construção do novo hospital, que esperamos se comece no próximo ano.

É uma batalha, em que todos os melgacenses temos de entrar. São precisos uns 1 000 contos. E para todos nós é tarefa que não custa.

Já não nos falta exemplos dignos de imitar-se, o do Sr. Amadeu Abílio Lopes e de Sua Ex.ma Esposa, de Chaviães, com a sua valiosíssima oferta de 350 000$00.

Nem nos faltam já dedicações, dignas de nota, graças a Deus. Mas é esta uma batalha em que todos, mas todos, temos de intervir.

Ninguém será contra. Quem o havia de ser, entre os melgacenses? – Quem? Se esta obra se faz para todos nós?! – Sobretudo, para aqueles que não possuem os meios de que nós podemos dispor, os pobrezinhos.

Está posto, mais uma vez, à prova o nosso bom desejo de servir a nossa terra. Aos Melgacenses, a todos, se pede nos ajudem. Se algum houvesse, não sabemos que o haja, mais desanimado, por favor, não desanime ninguém.

Vamos pois começar com os trabalhos.

Deus o quer! – É pela nossa terra.

Carlos

PS: No passado número do jornal, veio uma gralha, que nos prejudicou bastante. E assim, de Lisboa só nos deram para a compra dos terrenos, 50 000$00. E, nas vésperas da construção do novo hospital, dão-nos menos 18 000$00, para sustentar os nossos pobres doentes. Mas se todos os melgacenses nos ajudarem, tudo se fará.

Carlos

 

Padre Carlos Vaz: Uma vida de Serviço

Edição: Carlos Nuno Salgado Vaz

Coordenadores: Carlos Nuno Salgado Vaz

                           Júlio Nepomuceno Vaz

Braga

Julho de 2010

pp. 532,533

A GUERRA DO DIZ QUE DISSE NO SÉC. XIX

melgaçodomonteàribeira, 12.06.21

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ponte da folia - remoães

Nº 25                       SUPLEMENTO

19 de FEVEREIRO 1847

O ESPECTRO

Lisboa, 20 de Fevereiro

 

O vapôr de guerra hespanhol Blasco de Carai, chegado hontem de Vigo, trouxe notícias importantes. As forças do ex-conde do Casal foram completamente derrotadas, e elle fugiu precipitadamente para Valença. Não sabemos os detalhes circumstanciados da acção, mas referiremos o que dizem pessoas que vieram no mesmo vapôr.

O barão de Almargem atacou a Ponte da Barca, o conde das Antas Ponte de Lima, aonde se achava o chefe dos rebeldes. Ambas as pontes foram immediatamente forçadas. Dizem uns que a força rebelde da Barca fôra perseguida pelo barão de Almargem até Melgaço, aonde entrára na Galliza, deixando em nosso poder 200 prisioneiros; e que a de Ponte do Lima fugira para Valença. Dizem outros que as duas forças se reuniram, e passaram em Melgaço para Galliza por não poderem entrar em Valença. Outros em fim melhores informados dizem que o governo recebêra participações de Vigo nas quaes se diz que o Casal entrára em Valença inteiramente derrotado, e que levavam somente duzentas praças.

 O conde das Antas depois de destroçar o inimigo cahiu sobre Vianna, aonde entrou depois de alguma resistência, aprisionando 200 soldados, e o brigue Vouga que alli se achava fundeado.

 

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 35

melgaçodomonteàribeira, 05.06.21

 

O Manel não teimou; optou por ignorar a impertinência arrogante do filho. «Cabrão do caralho», cingiu-se a murmurar, escarrando para o chão e centelhando-o visualmente. Desandou e, pesadamente, dirigiu-se para o bar.

Aparentemente, não tinha interesse nenhum em ver a filha mas, ultimamente, desconfiava do seu ritmo de vida. Tinha um guarda-roupa assombroso e diversos pares de sapatos – tudo nupérrimo – e um sem-fim de produtos de maquilhagem de excelente qualidade. Portanto, nem episodicamente trabalhava. Tinha as suas suspeitas, os seus pressentimentos e sabia que não devia estar enganado. Mas isso comprazia-o pessoalmente.

Ver-lhe aquelas pernas bem feitas, as coxas carnudas e rijas, era uma psicose. Quando uma minissaia as realçava, ficava esgazeado e atiçado como fogo pelo vento. Eram tão aliciantes como as da mãe quando tinha a mesma idade. Perdia a razão, o corpo era fogo e uma lubricidade inexplicável incitava-o a perder-se entre aquelas pernas. Sentia calafrios e exsudava tanto como quando percorria a maldita ponte. O pavor de que se reproduzissem os momentos de folia desbridada e irrefreável, não muito distantes, convulsava-o e retinha-o.

Estacou à porta do bar, que estava escancarada. Tirou a boina preta e, com a mão, fingiu arranjar os cabelos compendiosos, antes de voltar a colocá-la.  O bar, edificado do lado esquerdo do salão de bailes, era estreito, mas tinha a mesma profundidade que este. De lés a lés, um balcão rústico de carvalho, feito com troncos e uma prancha; por cima, um abrigo de colmo do mesmo cumprimento; por detrás, a meia altura, uma exorbitante prateleira sustentava perto de duas centenas de garrafas de bebidas alcoólicas, de diferentes marcas, feitios díspares, tamanhos, épocas e países diferentes. Era o terreno dos aracnídeos: tinham fiado nelas umas incríveis variantes de rendados e de bordados refinados.  A limpeza não era o credo da casa.

O ar era brumoso, fumífero; o cheiro a álcool, pestilento; a música, surda, compelia os foliões a falarem ainda mais alto do que habitualmente.

Abrir caminho até ao balcão e pedinchar uma tigela de tinto foi deveras trabalhoso para o Manel. A barafunda era tal que teve de pacientar mais do que desejaria. Umectou os beiços e, com cara de hospedeira de bordo, consentiu que o olhar divagasse à sua volta. «O pessoal está todo bem», estimou com júbilo.

Era neste meio que gozava de uma dilecção desmedida pela vida sombria que era a sua. Para ele, embora sonhasse que devia ser constante, a alegria não era senão uma disposição puramente perceptível com periodicidade. Fez uma carranca como quem quer espantar os pensamentos grisalhos. Não era o local nem a ocasião para essas meditações. Queria alegrar-se, beber e comer até enjoar e regressar à casa, às tantas, cantando, como lhe aprazia fazer. Depois, sacudia a mulher para lhe acariciar o sexo até adormecer.

 

Nos dias de baile, o Manco exercia o papel de segurança com meticulosidade. Fazia rondas assiduamente: bar, comedor – sala de jantar -, cozinha e salão de bailes, sem alteração. Quando entrou no bar, o Manel hauria o que restava da segunda tigela. Saudaram-se num ápice; eram amigos de longa data e alimentavam um apreço recíproco.

Os suspensórios, que quase tinham crescido com ele, obviavam as calças de resvalar para o fundo da barriga. Os pés trazia-os invariavelmente calçados com pantufas castanhas.

Transpôs o balcão, onde uma das filhas e o filho caçula afrontavam os ressequidos festeiros. Ao deslocar-se, a manga esquerda da camisa marcava o compasso. Deu uma olhadela generalizada, mas não divisou nenhum desordeiro nem ninguém de relevância. Foi à esquina onde, por cima do móvel do tabaco, guardava a garrafa de branco e o copo; encheu-o e esgotou-o com imperturbabilidade. Enfiou um Ducados no canto da boca e pôs-lhe lume com um fósforo.

Para os clientes inabituais, constituía sempre um espectáculo riscar o fósforo com uma só mão. Segurava a caixa com o anelar, o mínimo e o polegar; abria-a, retirava o fósforo com o indicador e o médio, entre ao quais o mantinha firme; em seguida era só esfregá-lo na lixa.

Deu duas fortes chupadelas no cigarro e, depois de verificar mais uma vez que tudo estava em ordem, empurrou as portas vaivém da sala de jantar com a barriga – em algumas tarefas empregava-a como se fosse o braço faltante – e avaliou quantas mesas estavam ocupadas e com quantas pessoas. Havia algumas vazias, mas, vista a hora, a lotação era correcta. A mesa na qual estava o Cerdeira, conhecido como o louco de Quintela, despertou a sua curiosidade. Já tivera pegadilhas passageiras com ele. De estatura média, maxilas quadradas, era uma pilha de músculos. Com cerca de trinta e cinco anos, já tinha sido internado repetitivas vezes em instituições psiquiátricas.

Uma cerveja diante dele, fumava com placidez e nem os olhos levantou para o Manco que se achegara à mesa.

- Já pediste? – inquiriu.

Sem mexer, meio nauseado, retorquiu que não.

- O que queres então? – instou.

- Nada! – largou cruamente o homem.

O sangue aqueceu subitamente nas veias do Manco. Fosse quem fosse, execrava refutações num tom destes. Esmagou o Ducados com força entre os dentes para sofrear o descontentamento.

- Pois se é só para beber, tens o bar. Aqui é a sala de jantar ou não deste por ela? Não comes nada? O Cerdeira, sem se intimidar e sem, todavia, o mirar, deu uma passa no cigarro e, sussurrou enlanguescido:

- Eu, não, mas o meu cão sim – e apontou para debaixo da mesa.

Uma toalha de pano branca, salvaguardada por uma de plástico hialina, encobria as mesas e, em parte, ocultava-lhes os pés. O Manco teve de recuar e inclinar-se vagamente para poder ver por debaixo da mesa. De facto, um pequeno cão rafeiro regalava-se serenamente com o conteúdo dum prato.

Desta vez o sangue ferveu-lhe nas veias e acidulou. A mala hostia fez com que a bronquite crónica se manifestasse com a consagrada tosse produtiva e lhe anelasse a respiração. Dar uma iguaria cozinhada pela Vicenta, um manjar fresco e saboroso, feito na hora, a um cão, como se não fosse assaz bom para ele? Alguma vez pressentiria uma coisa destas? Era um desafio, uma agressão petulante. Talvez estivesse louco, como se dizia, mas isso não lhe dava o direito de insultar a sua comida e a sua mulher. Era coisa que nunca permitiria. Sem claramente se aperceber, estendeu o braço, cravou os densos e imponentes dedos da única mão no pescoço encolhido e bojudo do Cerdeira. Com metade da língua fora da boca, o estarrecimento era patente nas suas feições. O Manco, olhos arregalados pela cólera e avermelhados pelo álcool, clamou, esborrifando-o:

- Me cago en tu puta madre, maricón! Se não te agrada a minha comida, ninguém te força a pores cá os pés. Agora vires humilhar-me à minha casa, isso não! Comigo não brincas, hijo de puta! Sei que estás louco, mas eu estou-o mais do que tu, sabes?

O pobre demente sentia-se como o veado a quem o leão crava as fortes mandíbulas de imprevisto na garganta e, sem saber contra quê ou quem, não para de estrebuchar.

- Sais imediatamente da minha casa com o teu cão e não voltas a pôr aqui os pés. Percebeste-me, percebeste-me bem? – invectivou.

A interrogação foi um berro tão forte que, apesar do alarido vigente, as pessoas presentes na sala, assustadas, voltaram-se para assistir à cena.

Com um gesto seco, sacou-o da cadeira como se fosse uma caixa de cervejas, atraiu-o a si e projectou-o brutalmente contra a mesa desocupada que estava por detrás. A cena durou uns segundos. Desta vez, o estrondo originado ouviu-se no bar e algumas cabeças assomaram por cima da porta vaivém.

Sem revelar qualquer oposição, contenção ou mesmo fúria, o louco de Quintela deitou as mãos à cadeira que o acompanhara e, sem piar, pôs-se de pé. Com a mão, limpou o cuspo aspergido pela cara. Deu uma rápida visada ao adversário, como quem reconhece e aceita a sua superioridade, e dirigiu-se para o bar. O rafeiro, alheio à ocorrência, não interrompera a refeição; escoltou-o, portanto, com o osso de uma costeleta entre os dentes.

Pela reacção, ficara fortemente emocionado com a força excepcional, atípica do mastodonte que era o Manco. O Cerdeira, com o físico de estivador, sinzelado durante anos no porto de Vigo, se aflorasse a mais pequena chance, não deixaria de reagir da maneira mais violenta e inesperada. No fundo, o Sérgio, verdadeiro nome do Manco, fascinava-o; era uma massa que devia ser muito difícil de fazer vacilar, quanto mais derruir. Não ignorava, decerto, a sua supremacia, mas a avidez de o incitar para se aferir prevalecera, puxando-o a dar a comida ao cão.

O Manel, satisfeito, presenciava a zaragata com infinito prazer. Sorriu, com ironia, afixando os dentes podres, quando se afastou para passar o Cerdeira. Já tivera uns ligeiros aborrecimentos com ele quando trabalhara em Quintela.

- Que barulho foi este?

Desta vez, a Vicenta chegara atrasada e não pudera utilizar as suas capacidades de conciliadora. O Manco não contestou. Levantou a mesa e pôs as cadeiras à sua volta. A sua expressão repercutia o grosseirismo do gesto do Quintela. Propeliu as portas vaivém e penetrou no movimentado bar, não dando importância aos olhares de admiração e de respeito, com que o congratulavam os clientes.

- Foi uma boa lição que deste a esse bastardo, Sérgio – confessou-lhe o Manel, arreganhando a tacha e dando-lhe umas palmadinhas amigáveis nas costas.

Direccionou-se para de trás do balcão, pegou na garrafa de branco que deixara por cima do móvel do tabaco, e verteu o conteúdo no copo. Ficou meio. Dobrou-se, estirou a mão por baixo do balcão e recolheu outra.

Esse estúpido, esse apoucado do Cerdeira, com a sua louquice, exacerbara-o desmedidamente. Via-se condenado a beber mais do que de costume para sossegar a mala hostia que o invadira.

 

XII

No bar, por volta da meia-noite, o Benito do Capela juntou-se ao Manel; era um pobre diabo, companheiro e colega de trabalho ocasional quando lhe apetecia vergar o rinhão. Era precisamente o que mais pasmava o Manel: trabalhava quando queria, mas andava sempre bêbado. Quando o denegriam, comentava: «Vós viveis como se fosseis eternos, mas eu vivo como se cada dia fosse uma vida». Entendiam-se bem.

- Se tivesses vindo uns minutos mais cedo, cumprimentavas o teu amigo Cerdeira – brincou o Manel.

Mais ou menos da idade deste, era morgado e vivia com o pai, perto dali.

Também andava permanentemente de boina na cabeça, mas não pelo mesmo motivo que o Manel. Nunca tirara a boina em público, mesmo para coçar a cabeça. Escondia uma calvície precoce. A última vez que fora a Ourense renovar o bilhete de identidade, constrangeram-no a desguarnecer a cabeça para o medirem. Apavorado, indagou duas vezes, ante a perplexidade dos funcionários, se não podiam fazer de outro modo. Um moço da Notária que ali se encontrava detalhou, mais tarde, o que viu. O sucesso não tardou a entrar nos ouvidos da maioria dos malandros da região, entre os quais o Cerdeira. Uma tarde, no bar do Manolo, valendo-se do seu vantajoso físico, aliviou-o da boina, pondo-lhe a calva à vista. O Benito, paralisado pelo medo e pelas gargalhadas dos presentes, imprecou-o em silêncio e, a partir daí, fugia dele como da peste. Tinha um receio surreal do Loco de Quintela.

Era um grande pescador, dotado de amplos conhecimentos apenas superados pelos do Adriano. Como este, aprendera a compreender o rio muito antes da barragem vir a adulterar a região e impedir os peixes migradores de se deslocalizarem livremente.

Estava de bom humor. Àquela hora, naturalmente, tinham ambos a caldeira bem quente. Beberam umas chiquitas (tigelas) e o Manel, já meio nebuloso, contou-lhe a tareia que o Manco deu ao Cerdeira. Riram, radiosos. O ambiente do bar escalara e chegara ao cúmulo. Os cubalivres e as tigelas – maioritariamente – faziam chover uma hilaridade desenfreada. O Manco surgia, apreciava o ambiente, dava uma olhada nas notas que acolchoavam a gaveta e, encantado, prosseguia a sua ronda depois de ver o cu a outro copo de branco.

À uma da manhã, saíram e foram para a tienda do Biquitos, cem metros acima. Este brioso comerciante, pai do Chino, estivera expatriado mais de 20 anos no Brasil, onde conheceu a Glória. Pequena, gordinha e olhos puxados, parecia uma esquimó. O filho devia o epíteto à fisionomia legada da mãe.

Na sua cozinha, situada entre a especiaria e a sala de jantar, a Glória acomodava, até altas horas da noite, uns deliciosos pratos tabernais.

A sua especialidade eram os miúdos. Contudo, as bochechas de vitela, marinadas em vinho tinto com certos condimentos, representavam o pitéu mais solicitado. Tiraram muita clientela ao Manco porque, além da mulher cozinhar bem, praticavam uns preços honestos. Nos últimos dez anos de estadia nos subúrbios da cidade carioca, tinham explorado um pequeno restaurante o que os impregnou da simpatia, da alegria e dos gracejos representativos do povo brasileiro. Questão índole, eram a antítese da «Casa Manco».

O Manco, intratável, dizia aos clientes que lhe eram fiéis que a Glória cuspia no óleo para saber se estava quente. E terminava a frase com um expressivo «Me cago en Dios!».

Encomendaram duas doses de orelhas de porco cozidas, polvilhadas com uma pitada de pimento picante, nas quais se notava, todavia, uma leve ponta de sal. Comeram com sofreguidão, ao mesmo tempo que despejavam garrafas e motejavam. Era uma noite de regabofe, das que os dois adoravam quando o quadro era favorável.

- O outro dia – disse-lhe o Benito, hílare – o Seba (diminutivo de Sebastião) pediu-me para lhe ir arrancar as batatas dos dois campos que tem depois da ponte, do lado de cima da curva, sabes?

- Hã – hã grunhiu o Manel com a boca cheia.

Depois de uma ténue pausa, concatenou, risonho:

Então, perguntei-lhe quem as tinha plantado.

«Foi o Rique», disse-me.

- Sabes o que lhe respondi?

E deu uma gargalhada sonora.

- Que fosse pedir ao Rique, que sabia onde elas estavam! Se visses a cara que me fez!

Encostavam-se à parede, batiam com os punhos por cima da mesa ao mesmo tempo que gargalhadeavam.

Por volta das três da madrugada, saíram da mesa e do estabelecimento do Biquitos com dificuldade, atirando-se pela estrada abaixo a cantar em coro:

 

DE LA SIERRA MORENA

VIENEN BAJANDO

UN PAR DE OJITOS NEGROS

CIELITO LINDO DE CONTRABANDO.

 

AY,AY,AY, CANTA Y NO LLORES

PORQUE CANTANDO SE ALEGRAN

CIELITO LINDO LOS CORAZONES

 

Encostados a um automóvel, o Padre e o Chino fumavam um porro (charro) quando eles desfilaram claudicando. Apenas deviam estremar sombras.

- Que puta de cacetada levam! – admirou-se o Chino.

O Padre, enojado, cuspiu para o lado, como lhe tinha feito o pai.

O Chino, que tinha dado uma boa passa no charro, tossiu e acrescentou meio rouco:

 

Os promotores, que, naturalmente, eram os melhor servidos, esses, mostravam-se bastante discretos na abundância de bens locais. Mas os rumores de que possuíam propriedades aqui e ali, até em Espanha, à beira-mar, não deixavam lugar a dúvidas rapidamente. A jactância, beatitude profunda dos abastados, é uma das fraquezas mais traiçoeiras do ser humano; é uma faca à double tranchant. Os raros que tiveram o infortúnio de cair na reda da Justiça ficaram nus.

 

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 david de carvalho

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