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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 33

melgaçodomonteàribeira, 08.05.21

 

Antes de o sono a entorpecer, depreendeu que o Manolo sabia o que dizia: «Água mole em pedra dura tanto dá até que fura». O Fernando, ainda que lhe desagradasse, ia ter de talhar os sarrafos do outro lado do alpendre. A casa era sua, a decisão pertencia-lhe, e ele devia capitular sem protestar. Por fim, depois da profecia do Manolo lhe ter poluído o cérebro incansavelmente, exausta, ficou a ronquejar.

Na cama ao lado, a mãe, olhos oclusos, rezava de modo insensível. Baloiçada pelo espalhafato da padaria, peregrinava espiritualmente e, com os lábios, mimava «Pais Nossos» e «Avés Marias» vezes sem fim. Só depois da porta metálica do forno crepitar com persistência, é que a sucessão das orações se abreviou. Ficou serena, descansada.

A Otília teve um sono buliçoso. Por volta das sete e meia já estava de pé. A mãe repousava, respirando pausadamente. Preparou uma malga de descafeinado, mas não foi ao forno buscar o cacete fresquinho como costumava fazer. A noite não fora igual às outras e o dia tampouco o seria. Impulsivamente, já o tinha decidido, tal era o seu temperamento. Sentia-se irrequieta, nervosa, com pouco apetite. Depois de vazar a malga, foi à sala de jantar; com um movimento ríspido da mão, abduziu a pequena cortina azul escuro da janela situada por cima da porta da padaria. O telheiro estava mesmo em frente. Voltou para a cozinha. Sabia que era cedo para o Fernando fragmentar as ripas, contudo, o soído da porta encorajava-a fatalmente a dar uma olhadela através da janela.

Tinham transcorrido trinta minutos das nove quando os tímpanos lhe comunicaram formalmente que o Fernando dera a primeira machadada. Acorreu para a janela como uma louca, descerrou-a com balbúrdia e gritou ao padeiro:

— Fernando, não te quero ver mais decepar lenha aqui! Leva a lenha para detrás do telheiro e corta-a lá, anda! Não vês as rachas que me fazes na parede da casa?  Inclinada sobre o parapeito, de braço esticado, indicava-lhe o sítio das insignificantes fendas.

O Fernando nunca deixava de ripostar às suas exprobrações, mas, naquela manhã, embora surpreendido, guindou a cabeça lentamente na direcção da janela, esboçou um fingimento de riso e disse-lhe:

— De que me estás a falar, Otília? 

— Não vês as gretas que me fazes na parede? – recomeçou, irada.

O padeiro continuou a olhar para ela sem entrever.

A intimação atroadora de uma das patroas do forno galgara a estrada e ateara a atenção do Manolo. Com calma, saiu da loja e foi até à berma. Ali ficou, mirando com regalo a progressão da algarada que elaborara. Um sorriso malicioso e folião alumbrava-lhe o rosto trigueiro, e um fulgor de capitólio bailava-lhe nos olhos.

— Então não vês que é por causa das ripas que batem na parede, ou és tonto, Fernando? – insistiu, histérica.

O jovem homem, que conhecia bem os excessos da tia, endireitou-se, coçou as cerradas barbas fulvas e, com ar de cepticismo, ripostou:

— Tu não estás bem, mulher! Cuidas que são as ripas que fazem as fissuras? Quem te meteu na cabeça uma absurdidade destas? Isso é superficial, Otília. É o resultado do bom trabalho que te fizeram os alvenéis. Vira-te contra eles.

A elucidação, por mais apodíctica que fosse, não a persuadiria porque, quando algo se apropriava da sua mente, o resto era subsidiário.

O Manolo, desapercebido dos dois beligerantes, interveio. A intriga desenrolava-se maravilhosamente, melhor do que ele poderia supor.

— Não faças caso do que ele diz, Otília! É um patife, um calaceiro que não dá um passo sem gemer! Fia-te nele e vais ver como ficas sem casa, mulher!

Estas palavras bastaram para que a ingénua criatura se pusesse a disparatar e a agitar como uma alienada. Também foram a indução para que o padeiro, sem sequer desviar os olhos, percebesse quem era o instigador do delírio da tia.

— Vai pra detrás do telheiro trinchar a lenha, desgraçado, anda! Não me estragues a casinha que me arruinei para refazê-la! – e, de mãos unidas, levantou o olhar para o céu, como quem suplica Deus.

O padeiro perdeu a paciência.

— Estás doida varrida, Otília! Posso ser um desgraçado, mas tu és a pessoa mais crédula e pateta com quem deparei; és mais inocente do que a minha filha que não tem dois anos.

Fitou o dono da loja que, da outra banda da estrada, se empenhava em dominar o riso, e abanou a cabeça num gesto de impotência. Em seguida, virou-se para a tia e disse-lhe:

— A culpa não é tua, é daquele mangante – parasita – que, em vez de tratar da sua vida e deixar os outros em paz, escorcha a cabeça aos velhos! – disse, indigitando o Manolo.

A Otília, sem que transparecesse, melindrou-se. Era o seu ponto fraco. Velha, ela? Havia-as com muitos mais anos do que ela que ainda cavavam a terra e executavam afazeres como quando tinham cinquenta anos. Ela não o fazia por estar gasta, mas por ser sobejamente autónoma no capítulo peculiar. Embora magoada, conservou-se muda.

O padeiro, friamente, pousou uma ripa no cepo, elevou o machado e, antes de o deixar cair por cima, fixou a tia, simulando um ar de mau.

— Importuna-me com os teus desvarios, Otília, e vais ver que te deito mesmo a casa abaixo! – ameaçou – Vai, vai, que está a tua mãe a chamar por ti, mulher.

Foi uma conflagração.

— Ai meu Deus! Este homem está tolinho! Vai-me desgraçar! Vai abater a minha rica casinha sem eu lhe ter feito nada!

Contrariada, ao mesmo tempo que o amaldiçoava em voz alta, propeliu o batente da janela com violência. O Manolo já se tinha sumido.

— Por que te pões assim, mulher? Precisas de berrar? – censurou-a a mãe quando a viu pela porta do quarto.

— Ó minha mãe, não metas o bedelho nisto.

Uns minutos mais tarde, no café, foi o patrão quem acolheu o Fernando e o seu ajudante; em silêncio, confeccionou-lhes as sandes. Pôs o prato com os bocadillos diante deles e ousou:

— Conho, Fernando, que aconteceu contigo e a Otília? Eu ouvi-a vociferar e resolvi assanhá-la ainda mais. Como se pôs, Dios mio!