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MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

MELGAÇO, DO MONTE À RIBEIRA

História e narrativas duma terra raiana

NEGÓCIO SUJO

melgaçodomonteàribeira, 29.05.21

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igreja paroquial de roussas

 

UM LUGAR ONDE NADA ACONTECIA

XV

Na Galiza, província espanhola que confrontava com Melgaço e outras localidades portuguesas na margem do rio Minho, a carência de produtos importados era total. A guerra mundial tinha terminado mas a Espanha continuava sob bloqueio comercial por parte das potências aliadas que haviam vencido o conflito. O pouco que os galegos conseguiam era através do contrabando. Se os produtos tradicionais eram difíceis calcule-se as novidades científicas. Casos de tuberculose e meningite que eram frequentes naquela época, poderiam ser melhor combatidos caso a penicilina e outros derivados fossem acessíveis. Os contrabandistas forneciam aqueles produtos a troco de fortunas. Como podia ser se eram controlados? Causava espécie tais produtos miraculosos em Portugal não surtirem o mesmo efeito na Espanha.

A quantidade de penicilina e estreptomicina que agora ia para Espanha era um assombro. Trataria-se de milagre ou mágica? Os sinais de riqueza de alguns cidadãos tornaram-se acintosos.

O Zézé Peres fora atacado de infecção pulmonar que estava sendo atacada com estreptomicina com resultados satisfatórios que o levaram à cura. Um dia, conhecido comerciante e contrabandista, chegou-se ao Zézé e em modos de confidência propôs-lhe pagar três escudos por cada frasquinho vazio da estreptomicina. Não aceitou mas outros pacientes devem ter aceitado.

O arcipreste, pároco de Roussas, faleceu vitimado pela idade. Freguesia considerada rica pelos óbolos, côngrua e espórtulas auferidas pelos serviços religiosos e consolo espiritual, era cobiçada pelos padres de paróquias carentes. As solicitações ao Arcebispo de Braga eram numerosas. Cada pretendente apresentava suas razões à petição. O pároco de Fiães era sério concorrente e seus méritos apregoados, principalmente pelo sobrinho, na altura da vila de Melgaço. Tudo levava a crer que ele seria o indicado. Para espanto geral e irritação daquele sobrinho foi nomeado para Roussas com o cargo de arcipreste, um padre filho do Concelho que exercia seu apostolado em Vila do Conde. A revolta do padre da vila foi grande; aliado ao estado nervoso que nos últimos tempos o assolava e motivava atitudes desairosas; a carta irreverente escrita a tinta vermelha que enviou ao arcebispo precipitou a sua transferência.

Por algum tempo o jovem e nervoso padre tentou desprestigiar o novo arcipreste e sua família que contava com mais dois padres. Um destes padres tinha sido apelidado quando estudante no seminário, de Campaínhas.

Valeu-se dum filho do sacristão, garoto habilidoso para o desenho, pedindo-lhe que fizesse a caricatura daquele outro padre enfiado numa batina recoberta de campainhas.

 

                                                                                     Manuel F. Igrejas

 

Publicado em: A Voz de Melgaço

 

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 34

melgaçodomonteàribeira, 22.05.21

 

O padeiro deitou a mão à sande de presunto. O pão, saído do forno, achatou-se sob a pressão dos dedos. Antes de dar a primeira dentada, encarou-o de esguelha e delineou um sorriso levemente cáustico.

— Não desperdiças uma, Oliva – o Fernando denominou sempre o Manolo pelo seu segundo nome. é novidade para ti, e, quando quero, também sei tecer encrencas.

— Eu não tenho nada que ver com o ocorrido, Fernando. Apenas piquei a Otília para me divertir um pouco. Sabes como sou. Confias em mim, ou não?

O rosto traía os dizeres aos quais o Fernando não dava qualquer crédito, evidentemente.

—  Confio em ti de olhos fechados, Oliva. 

Com efeito, as relações e a concórdia entre eles eram um tanto eufónicas. O Manolo tinha uns dez anos mais. O primeiro contacto selou uma sincera afinidade que se foi reforçando gradualmente. Eram integramente semelhantes. A propensão e o esmero congénitos pelo humor sociável, espontâneo e bucólico, cimentou uma indestrutível condescendência.

Nenhum desconhecia que a irrisão é uma propriedade detentora de carinho e irrigada  de fraternização. Em geral, graceja-se meramente com as pessoas amigas. Reinavam com admirável maneabilidade, sem subentendidos, sem iniquidade nem indelicadezas.

— Sei que não me estás a levar a sério, Fernando. Não é mentira nenhuma  que adoro pilheriar, mas com a Otília há muito que deixei de o fazer. Limito-me a umas facécias ligeiras. É uma peste incontrolável, bem o sabes.

— Não perseveres com a tua ladainha, Oliva, senão vou a Puente Barjas informar o teu amigo tenente que tens a garagem repleta de bananas. Ó Rosa – implorou –, tira-mo daqui antes que desatine.

O Manolo deu uma gargalhada e escapuliu para a loja.

À noite, a Otília não foi capaz de controlar a exasperação que a facécia da casa lhe provocara. Suspicaz, anatematizou sucessivas vezes a casmurrice do Fernando.

Na padaria, o sobrinho desenfornava os primeiros cacetes e ainda ela e a mãe não tinham posto fim ao litígio. A conversa era cativante. Para o padeiro e o seu jovem ajudante, que as escutavam, foi um jocoso divertimento. De vez em quando, interceptavam umas palavras sem, todavia, apanharem o fio da discussão.

O Fernando não duvidava do teor nem da essência do que estava a ser debatido por cima deles. Não pôde disfarçar uma desbordante risada de real conivência ao lembrar-se do autor da  trapaça. «A possibilidade de uma irracionalidade ser aceitável e defrontada como uma contingência, é indiscutível, desde que a pessoa concernida presuma que lesa o seu bem-estar », pensou.

 

 

A estrada diante da Casa Manco estava saturada de automóveis aparcados desordenadamente nas valetas e, em alguns sítios, em campos e terrenos baldios.

A orquestra que animava o baile naquela noite não diferia em nada da maioria das que a tinham antecedido: desafinada, iterativa e barulhenta. Estava incluída no lote das que cobravam os cachês mais abordáveis. As mais notáveis deixaram de ali actuar desde que o Manco não honrara pecuniariamente o contrato com uma delas, argumentando que o número de entradas não fora satisfatório.

De todos modos, o mérito das orquestas não tinha a mais pequena influência para grande parte das parelhas, que apenas reclamavam uma exultação erótica leviana. Aos olhos da sociedade, a música era o meio que autorizava os jovens a apertar-se e a excitar-se abertamente nos braços uns dos outros. A falsa permissividade da sociedade favorizava paixões ardentes que incrementavam neles, e faziam com que a abrasão os consumisse profundamente; obrigava muitos a dissimularem-se em lugares recônditos para poderem asfixiar esse ardor, desafiando as contradições sociais e violando as suas proibições aberrantes.

Depois de duas ou mais horas em liminares lascivas, os casais mais exaltados, incontinentes desertavam o salão para se refrescarem com uma bebida ou para dar um passeiozinho. Passo a passo, caminhavam pela estrada semi caliginosa. Palravam, recreavam, caçoavam e riam com doçura. De repente, desapareciam, como ingurgitados pela escuridão que envolvia os campos ladeiros da Casa Manco.

Só não escapavam ao olhar perspicaz do Padre e do seu comparsa. Quando a onda gerada pela ganza os exortava, a partir de certa hora, arrastavam os pés à saída do salão de bailes; escrutavam cuidadosamente as parelhas que davam mostra de forte frenesim. Os moços deleitavam-se com estes casalinhos inflamados.

Com absoluta discrição, perseguiam imediatamente o casal mais passional. Além de o meio não ter segredos para eles, moviam-se como felinos. A sua presença foi descoberta escassas vezes. Silenciosos, contemplavam-nos. Quando consideravam que a coisa se acelerava e os gemidos anunciam um fim iminente, lançavam-lhes torrões e caroços de couves e, com un apito que traziam no bolso, improvisavam um charivari. Os amorosos, caóticos, aterrados e, em especial, inibidos, erguiam-se precipitadamente e evaporavam-se. Algumas meninas tinham abandonado as calcinhas no sítio, um trofeu que os rapazes coleccionavam. Os sacanas, ledos, curtiam uma de riso infindável.

Uma sublime latada bem verde, sob a qual faziam grelhados ao abrigo do sol, protegia a entrada da Casa Manco. No domingo à noite, como era usual, apareceu o Manel. O filho e o Chino, os miolos bem enfumados, estavam sentados num dos dois longos bancos de madeira ali colocados. O pai do rapaz ainda estava a meio pau, apesar de já ter mais vinho do que sangue nas veias. Como o Manco, por comer muito suportava bem o álcool. Qualquer prediria que estava sóbrio. Portanto, como todos os domingos, subira a S. Gregório e visitara as tascas das Pachecas, da Tia Antónia, do Camilo e os cafés Seixo e Coelho. O número de tigelas esvaziadas era incalculável.

O Padre não tinha qualquer dúvida quanto à sua comparência no Manco; era uma etapa do seu périplo dominical. Odiava-o tanto que só a sua vista indispunha-o. O Chino dera por ela e receava que, um dia, o colega fizesse uma asneira.

— Ó rapaz – apostrofou o Manel abruptamente–, a tua irmã anda no baile?

Ficou irritado. Hesitou uns segundos em desdenhá-lo ou replicar. Para quê saber dela se não se falavam?

— Se anda, não a vi; e se a tivesse visto também não to dizia – balbuciou secamente.

Curvou-se, apoiou os braços nas coxas e entrelaçou os dedos das mãos, como quem despede o abelhudo.

Continua.

 

 

O CONCELHO DE CASTRO LABOREIRO

melgaçodomonteàribeira, 15.05.21

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CASTRO LABOREIRO - PERTURBAÇÕES NO QUADRO ADMINISTRATIVO DO CONCELHO (SÉC.XVI)

 

Nos alvores do século XVI, malgrado a casa de Bragança ter sido restaurada durante o reinado de D. Manuel, não lhe foi devolvido o padroado de Castro Laboreiro. A Igreja passou então para a tutela da Ordem de Cristo. Foi o seu primeiro comendador e abade Álvaro Rodrigues Correia, com recomendação régia ao Arcebispo de Braga para que não colocasse entraves à nomeação do Reitor apresentado. Na avaliação efetuada ao tempo do arcebispo D. Manuel de Sousa (1546), foi a igreja avaliada em 60$000 reis, figurando nas terras da Vila de Melgaço. Mais tarde, durante o mandato do 2º comendador, Francisco Nobre (1565), foi elaborado o Tombo da comenda de Santa Maria de Castro Laboreiro, com os seus limites.  D. Francisco de Lima, visconde de Vila Nova de Cerveira e alcaide-mor de Ponte de Lima (1612), lavrou carta da administração desta comenda, e em 1616 foi elaborada carta de nomeação, para as mesmas funções, de Rui Barreto, face à renúncia do cargo a favor da coroa pelo anterior administrador. No período restauracionista, Diogo Soares, partidário por Castela, deixou a comenda vaga que viria a ser atribuída em 1642, a D. António da Cunha, sobrinho de D. Rodrigo da Cunha, arcebispo de Lisboa. Mais tarde, a Igreja de Castro Laboreiro foi vigairaria anexa à Matriz de Ponte de Lima (século XVII) e passou a abadia dos bispos de Tui. No século XIX passou a reitoria e Comenda da Ordem de Cristo.

Em termos administrativos, muito representados pelo que foi deixado na histografia do seu castelo e Igreja paroquial, Castro Laboreiro mantém-se português até ao domínio dos Filipes, passando para domínio espanhol com a perda da independência no século XVI. Durante este período principia-se a sua decadência. O novo alcaide espanhol do Castelo de Castro Laboreiro descreve a fortaleza como estando povoada de “gralhas”. Embora a data da restauração da independência de Portugal seja dezembro de 1640, Castro Laboreiro só se reintegra no território português em 1666, durante a Guerra da Restauração. Em 1659, a destruição de parte do castelo de Castro Laboreiro debilitou as defesas do lugar. Este facto está descrito num documento da Torre do Tombo, livro nº 51, folha 5. A partir de 1715 estabelece-se um período de paz e apenas no contexto das invasões francesas voltará a alterar-se o seu enquadramento político-administrativo.

 

CASTRO LABOREIRO – DO PÃO DA TERRA AOS

FORNOS COMUNITÁRIOS

Uma proposta de mediação patrimonial.

Diana Alexandra Simões Carvalho

Mestrado em História e Património

Ramo de Mediação Patrimonial

Faculdade de Letras da Universidade do Porto

pp.39-40

FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 33

melgaçodomonteàribeira, 08.05.21

 

Antes de o sono a entorpecer, depreendeu que o Manolo sabia o que dizia: «Água mole em pedra dura tanto dá até que fura». O Fernando, ainda que lhe desagradasse, ia ter de talhar os sarrafos do outro lado do alpendre. A casa era sua, a decisão pertencia-lhe, e ele devia capitular sem protestar. Por fim, depois da profecia do Manolo lhe ter poluído o cérebro incansavelmente, exausta, ficou a ronquejar.

Na cama ao lado, a mãe, olhos oclusos, rezava de modo insensível. Baloiçada pelo espalhafato da padaria, peregrinava espiritualmente e, com os lábios, mimava «Pais Nossos» e «Avés Marias» vezes sem fim. Só depois da porta metálica do forno crepitar com persistência, é que a sucessão das orações se abreviou. Ficou serena, descansada.

A Otília teve um sono buliçoso. Por volta das sete e meia já estava de pé. A mãe repousava, respirando pausadamente. Preparou uma malga de descafeinado, mas não foi ao forno buscar o cacete fresquinho como costumava fazer. A noite não fora igual às outras e o dia tampouco o seria. Impulsivamente, já o tinha decidido, tal era o seu temperamento. Sentia-se irrequieta, nervosa, com pouco apetite. Depois de vazar a malga, foi à sala de jantar; com um movimento ríspido da mão, abduziu a pequena cortina azul escuro da janela situada por cima da porta da padaria. O telheiro estava mesmo em frente. Voltou para a cozinha. Sabia que era cedo para o Fernando fragmentar as ripas, contudo, o soído da porta encorajava-a fatalmente a dar uma olhadela através da janela.

Tinham transcorrido trinta minutos das nove quando os tímpanos lhe comunicaram formalmente que o Fernando dera a primeira machadada. Acorreu para a janela como uma louca, descerrou-a com balbúrdia e gritou ao padeiro:

— Fernando, não te quero ver mais decepar lenha aqui! Leva a lenha para detrás do telheiro e corta-a lá, anda! Não vês as rachas que me fazes na parede da casa?  Inclinada sobre o parapeito, de braço esticado, indicava-lhe o sítio das insignificantes fendas.

O Fernando nunca deixava de ripostar às suas exprobrações, mas, naquela manhã, embora surpreendido, guindou a cabeça lentamente na direcção da janela, esboçou um fingimento de riso e disse-lhe:

— De que me estás a falar, Otília? 

— Não vês as gretas que me fazes na parede? – recomeçou, irada.

O padeiro continuou a olhar para ela sem entrever.

A intimação atroadora de uma das patroas do forno galgara a estrada e ateara a atenção do Manolo. Com calma, saiu da loja e foi até à berma. Ali ficou, mirando com regalo a progressão da algarada que elaborara. Um sorriso malicioso e folião alumbrava-lhe o rosto trigueiro, e um fulgor de capitólio bailava-lhe nos olhos.

— Então não vês que é por causa das ripas que batem na parede, ou és tonto, Fernando? – insistiu, histérica.

O jovem homem, que conhecia bem os excessos da tia, endireitou-se, coçou as cerradas barbas fulvas e, com ar de cepticismo, ripostou:

— Tu não estás bem, mulher! Cuidas que são as ripas que fazem as fissuras? Quem te meteu na cabeça uma absurdidade destas? Isso é superficial, Otília. É o resultado do bom trabalho que te fizeram os alvenéis. Vira-te contra eles.

A elucidação, por mais apodíctica que fosse, não a persuadiria porque, quando algo se apropriava da sua mente, o resto era subsidiário.

O Manolo, desapercebido dos dois beligerantes, interveio. A intriga desenrolava-se maravilhosamente, melhor do que ele poderia supor.

— Não faças caso do que ele diz, Otília! É um patife, um calaceiro que não dá um passo sem gemer! Fia-te nele e vais ver como ficas sem casa, mulher!

Estas palavras bastaram para que a ingénua criatura se pusesse a disparatar e a agitar como uma alienada. Também foram a indução para que o padeiro, sem sequer desviar os olhos, percebesse quem era o instigador do delírio da tia.

— Vai pra detrás do telheiro trinchar a lenha, desgraçado, anda! Não me estragues a casinha que me arruinei para refazê-la! – e, de mãos unidas, levantou o olhar para o céu, como quem suplica Deus.

O padeiro perdeu a paciência.

— Estás doida varrida, Otília! Posso ser um desgraçado, mas tu és a pessoa mais crédula e pateta com quem deparei; és mais inocente do que a minha filha que não tem dois anos.

Fitou o dono da loja que, da outra banda da estrada, se empenhava em dominar o riso, e abanou a cabeça num gesto de impotência. Em seguida, virou-se para a tia e disse-lhe:

— A culpa não é tua, é daquele mangante – parasita – que, em vez de tratar da sua vida e deixar os outros em paz, escorcha a cabeça aos velhos! – disse, indigitando o Manolo.

A Otília, sem que transparecesse, melindrou-se. Era o seu ponto fraco. Velha, ela? Havia-as com muitos mais anos do que ela que ainda cavavam a terra e executavam afazeres como quando tinham cinquenta anos. Ela não o fazia por estar gasta, mas por ser sobejamente autónoma no capítulo peculiar. Embora magoada, conservou-se muda.

O padeiro, friamente, pousou uma ripa no cepo, elevou o machado e, antes de o deixar cair por cima, fixou a tia, simulando um ar de mau.

— Importuna-me com os teus desvarios, Otília, e vais ver que te deito mesmo a casa abaixo! – ameaçou – Vai, vai, que está a tua mãe a chamar por ti, mulher.

Foi uma conflagração.

— Ai meu Deus! Este homem está tolinho! Vai-me desgraçar! Vai abater a minha rica casinha sem eu lhe ter feito nada!

Contrariada, ao mesmo tempo que o amaldiçoava em voz alta, propeliu o batente da janela com violência. O Manolo já se tinha sumido.

— Por que te pões assim, mulher? Precisas de berrar? – censurou-a a mãe quando a viu pela porta do quarto.

— Ó minha mãe, não metas o bedelho nisto.

Uns minutos mais tarde, no café, foi o patrão quem acolheu o Fernando e o seu ajudante; em silêncio, confeccionou-lhes as sandes. Pôs o prato com os bocadillos diante deles e ousou:

— Conho, Fernando, que aconteceu contigo e a Otília? Eu ouvi-a vociferar e resolvi assanhá-la ainda mais. Como se pôs, Dios mio!

 

 

MELGAÇO, EMIGRAÇÃO CLANDESTINA 3

melgaçodomonteàribeira, 01.05.21

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josé gonçalves  foto jornal público

PASSAPORTES NA CINTA

Naquela época, era vulgar motoristas prestarem serviços a engajadores e passadores. Nas suas investigações, a PIDE e a guarda esforçavam-se por perceber até que ponto eles estavam envolvidos nas redes de auxílio à emigração clandestino, até porque o veículo reverteria para o Estado. Alguns tornavam-se autónomos. Seixo, que tantos homens conduzira até Raquelinda, foi um deles.

Vivia na freguesia de São Gregório, como Raquelinda. Mal se casou com a sobrinha, Lurdes Durães, meteu-a no negócio. Era uma rapariga de face rosada, olhos castanhos, ternos, magra como um pau de virar tripas. “Quarenta quilos era o meu peso”, diz ela. Óptimo para o disfarce. “Usava uma cinta para levar os passaportes falsos.”  Quem os fazia era o padrinho dela, exímio na arte de copiar. Punha o nome e os carimbos de saída de Portugal e de entrada em Espanha.

Lurdes ia com o marido buscar gente “a Monção, a Paredes de Coura, a Braga, ao Porto, aonde fosse”, e entregava-a a um passador, perto de casa. O homem esperava-os à hora combinada nas casas de banho, atrás da escola. Não havendo guarda, desaparecia em menos de um ámen. Havendo, fazia tempo por ali. O comboio apanhava-o no outro lado da fronteira e transportava-os até Ourense, de onde seguiam, de camioneta ou comboio, até à fronteira franco-espanhola.

O taxista chegava a ir a Espanha duas vezes no mesmo dia. Estava convencido de que levantaria mais suspeitas se viajasse sozinho. “Onde ides?” perguntava o guarda. “Vamos ali buscar pão.” Quando tiveram o filho, ia o bebé ao colo da mãe. “Onde ides?” “Ai, vamos com ele ali ao médico.”

Quando iam a Monção buscar gente, serviam-se do palácio da Brejoeira, faustosa construção com 18 hectares de vinha, oito de bosque, três de jardim. Seixo estacionava no fim do muro. Ao vê-los ali, havia quem parasse a perguntar: “Precisa de alguma coisa?” Para se livrarem disso, encenaram um enjoo. “Eu saía, ia para aquele terreno devoluto como se me encontrara mal.”

Era cada susto. Um dia, passaram uma rapariga de Paredes de Coura, forte, alta, tão alta que quase não cabia no carro. Vestia um casaco de “uma malha muito fininha, forrado com esponja”, de um azul tão forte que fazia doer os olhos de Lurdes, e trazia uma mala recheada, “como se fosse para férias”. Abriram-lha, tiraram de dentro o que podia levar. Arrumaram tudo dentro de uns sacos.

- É inverno, a mulher vai ter frio, veste o casaco dela – terá dito Seixo à mulher.

- Está bem.

Naquele dia, quando o marido foi mostrar os passaportes, o polícia de serviço puxou conversa com ele. À porta, a fumar um cigarro, estava o chefe. Atirada a beata, aproxima-se dela: “Levas um casaco muito bonito!” Ela tremeu como varas verdes.

O CORAÇÃO AOS PULOS

Tantas vezes andava ela com o coração aos pulos. Nenhuma como quando levou duas raparigas dos Arcos de Valdevez. Ali em Frieira, para lá da casa da Raquelinda, costumavam estar dois carabineiros. Apareceram “um senhor de bastante idade e um rapaz novo”. Lurdes gosta de olhar para as pessoas nos olhos, mas naqueles não. Ficava virada para a frente, “direitinha”, como uma criança amedrontada. O marido abriu a gaveta do tablier, tirou os passaportes de ambos e entregou-os.

- “E elas?” – perguntou o mais velho, de olho nas raparigas que iam no banco de trás.

- “Elas são nossas vizinhas, iam ao médico a pé a Ourense e nós tivemos pena delas, e demos-lhes boleia” – respondeu ele.

O mais velho ordenou-lhes que saíssem do carro e que os acompanhassem ao posto. Lurdes até pensou que o seu coração ia rebentar. “Eu olhei, dei com os olhos do senhor novo. Ele viu tanta aflição, tanta aflição na minha cara que deitou a mão ao ombro do outro e disse: ‘Vamos embora, deixa-os ir’.”

Seixo sabia o que era a prisão. Antes de se casar, fora preso pela PIDE e levado para o Porto, onde amargara 45 dias. Um cliente fora detido na fronteira franco-espanhola e denunciara-o. A notícia viera por ali abaixo. Passara o regato com duas crianças da família. Negaram tudo. Negar era a sua única defesa.

Quando a luz eléctrica chegou à aldeia, em 1969, talvez 70, Lurdes e o marido mudaram de vida. Abriram um café, mesmo ao pé da PIDE. Compraram um segundo táxi. O motorista contratado para o conduzir ainda transportou alguns clandestinos, mas poucos. O contexto era outro.

Salazar caíra da cadeira de lona, no Forte de Santo António, no Estoril. O país vivia a Primavera Marcelista. Logo em 1969, a emigração clandestina deixou de ser crime – passou a contra-ordenação punível com multa, a não ser que se estivesse a escapar ao serviço militar. Qualquer interveniente na emigração clandestina sujeitava-se então a 18 meses de prisão – mais se ganhasse dinheiro com isso.

No café de Lurdes, o chefe da PIDE sentava-se sempre na mesma mesa, de costas para o balcão. Se entrasse um desconhecido, ela adivinhava ao que vinha. Punha-se a olhar para ele. Esticava o dedo médio e o indicador e levava-os ao ombro. Nem todos decifrariam tal gesto, mas, se para ali ficassem, quietos, com ar de quem nem sabia o que fazer, o PIDE levantava-se e saía. Se tivessem dinheiro, Lurdes chamava-lhes o passador. Se não ensinava-lhes o caminho.

Não acredita Lurdes que enganava a polícia. “As pessoas não eram parvas, fechavam os olhos porque queriam.” O historiador Victor Pereira Também está convencido de que a corrupção não explica tudo o que se passava na fronteira. Muitos agentes conviviam desde pequenos com aquela realidade, alguns tinham “entre os seus mais próximos, passadores, contrabandistas ou emigrantes clandestinos”, alguns até já tinham feito parte do negócio antes de entrar na polícia.

Portugal, era um país pobre, conservador, rural, de certo modo feudal. Os “senhores das terras” defendiam com unhas e dentes a política oficial de enclausuramento. Em Melgaço, chegaram a fazer manifestações a exigir que a PIDE combatesse melhor a emigração clandestina.

 

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13 de Abril de 2014