FRAGMENTOS DE VIDAS RAIANAS 31
Preferiu vilipendiar o rapaz. Molhou o bico na tigela. Ao reparar no Nelo, rememorou-se de um acontecimento insólito. Interpelou-o.
— Nelo, sabes com quem embati anteontem no meu campo junto do regato? Essa pessoa disse-me que estava à tua espera. Admito que fiquei abismado. Tem-me saído da cabeça, mas agora quero saber se não me mentiu.
— Que estava à minha espera para quê?
O Virgílio sorria. O episódio ia interessá-los.
— O indivíduo afirmou-me que adquirira um televisor em São Gregório e que vigilava a tua vinda.
— Ah! – quase clamou o Nelo, arrebatado – Não vos relatara essa! – adiu, dirigindo-se ao Zeca e ao Manolo – Foi o Barqueiro, esse filho da mãe!
— O Barqueiro? – redisseram, cépticos, os dois homens.
— Foi o Barqueiro, sim senhor! – certificou o Nelo, triunfante, desnudando o incisivo de ouro – Quem havia de dizer, heim?
O espanto do Manolo e do Zeca era eloquente.
— Como lidara com o bicho – prosseguiu o Virgílio –, quando me disse isso, pensei que se estava a armar em malandro. Mas não, falou como se fosse coisa costumeira nele e normal para mim.
A alcunha de Barqueiro herdara-a do pai, bateleiro entre Arbo e o cais de S. Marcos, no Peso. Depois do serviço militar cumprido, concorreu para a Guarda Civil e foi seleccionado. Com menos de trinta anos fora enviado para o posto de Crecente, cujos membros vigiavam os camiões de bananas.
Incorruptível resoluto, durante os dezoito meses que ali policiou intricou, com tendencioso alento, o trabalho aos contrabandistas e aos colegas da Benemérita. No dia que foi transferido para o Ferrol, os colegas e os passadores da zona experimentaram um tremendo sentimento de alívio.
— Quando a Teté – Teresa, mulher do João-João – me disse para quem era o televisor, pensei que estava a brincar comigo – esclareceu o Nelo –, mas não. Ainda ponderei se devia levar-lha, mas... Já me olvidara desse traste, carambas!
— O cabrón! – bradou o Manolo – Nem os pés aqui pôs o malandro! O que nos fez sofrer esse gaxo! Quantas vezes me apeteceu dar-lhe uma paliza – tareia!
— E digo-vos mais: tenho a certeza de que o televisor não era para um amigo, mas para ele. O tipo rebaixou-se o menos que pôde. Mas também lhe mamei duzentas pesetas por ser ele. Quando lhas pedi, retrucou-me que a Teté lhe dissera que já.... Não o deixei ir mais além e intimidei-o, dizendo-lhe que, se quisesse levar a televisão, tinha de me cagar duzentas pesetas. Tirou imediatamente duas notas do bolso. Foi para lhe fazer pagar uma ínfima parte das que nos fez passar enquanto aqui esteve.
— Como é que um sacana destes muda ao cabo de tantos anos? – admirou-se o Zeca.
— Zeca, custou-lhe, mas aprendeu. Foi o que viu aqui e no porto do Ferrol que o revirou. Ainda não notaste que, com o tempo, até os mais renitentes persuado? Sou um género de missionário do contrabando, pá – respondeu-lhe o Nelo.
Esgargalharam-se, radiantes.
Naquela noite, quando o Manolo trancou as portas da loja e do café, já decorriam uns minutos das vinte e duas e trinta.
Orientou-se para a ponte e fincou-se uns minutos no guarda-corpo. A barragem, sublimemente ilumidada, sobressaía da obscuridade envolvente. Alçou os olhos e dissecou os contornos imprecisos da igreja de San Miguel de Desteriz, sobranceira à represa. Rogava a ajuda do santo. Este ritual imarcescível predispunha-o para o trabalho perigoso e opressivo que o esperava.
Deu meia volta e, cautelosamente, desceu as escadas que conduziam à ala direita do andar inferior, onde se encontravam os quartos de dormir, mas não parou; contornou a casa e introduziu-se na garagem por uma pequena porta lateral.
Estava, realmente, uma noite propiciatória para contrabandear. O luar, frouxo, idealizava as circunstâncias para os rapazes evoluirem furtivamente, e era suficiente para se guiarem; o estrépido do caudal do regato e do rio, mais protuberante à noite, cobriria o bulício abafado da marcha, do estalido dos galhos pisados, das colisões fortuitas e das imprecações.
As dez toneladas de bananas não tardariam em falar português.
No exíguo eucaliptal diante do caminho de acesso à garagem, o Zeca e os carregadores, electrizados, mas animosos, expectavam. O Nelo já tinha posicionado sobre o regato a escada e, por cima desta, a tábua larga do mesmo cumprimento, unindo a sua leira à do Virgílio. Os carregadores podiam passar facilmente, com toda confiança e seguridade.
A Maribel não abandonara o café, mergulhado na opacidade; abancara diante da vidraça, ao lado da primeira das duas janelas do lado direito do bar. Para amenizar a nervosidade, a sobreexcitação, esparralhara um montão de saquinhas de pipocas por cima da mesa. Com o usitado cabo de enxada entre as pernas, estava pronta para seroar.
Dali, entre as trevas circundantes, vislumbrava a luz dos faróis dos veículos que desciam para a Frieira. Desde que um transpunha o café do Julian, uns metros antes da curva onde se situava a loja do Abel, os raios luminosos brilhavam com intensidade. Esbordoando com pujança duas vezes no solo de lajes com o cabo de madeira, alertava os que por baixo se apressavam. Neste caso, o Zeca partia instantaneamente para o eucaliptal avisar e imobilizar os carregadores que viessem à carga; o Manolo apagava a luz e entrincheirava-se com quem lá se encontrasse. Só depois de novo sinal, três pancadas leves, o Manolo desaferrolhava a porta, imitava um miado e o trabalho retomava o seu curso expedito.
Para a Maribel diferenciar um automóvel, tinha que este chegar à altura do comércio, o que quebrava significativamente a cadência durante as transferências. Visto o tempo ser uma componente fulcral do petate, o Manolo matutou seriamente no problema. Para ele, só se podia ganhar uns minutos na recta que principiava diante da loja do Abel – depois da Maribel ver a luz pela primeira vez – e finalizava cerca de quatrocentos metros mais abaixo, junto da casa do Pepe. Para desenvencilhar o inconveniente, chegou à conclusão de que era preferível fazer uns testes.
Continua.